sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Sortear suspeitas


por FERNANDA CÂNCIO | Diário de Notícias




Um procurador quer assistir ao sorteio, no Tribunal da Relação, que decidirá, em suposta aleatoriedade, qual coletivo de juízes apreciará um recurso referente a processo cuja acusação dirige. Apesar de a notícia que tal revelou, publicada na segunda-feira no Correio da Manhã e até agora não desmentida, certificar tratar-se de algo totalmente inédito, nela não se encontra referência a qualquer contacto com o procurador em causa para confirmar ou infirmar o facto; muito menos contraditório perante a expressão de uma suspeita tão forte sobre um procedimento de um tribunal que levaria um agente judicial a querer estar presente para "policiar".
O paradoxo continua na reação no dia seguinte, no Expresso online, do presidente do Tribunal da Relação. Este é citado dizendo que não recebeu qualquer pedido, que a receber seria o primeiro, que não acredita que venha a ser feito mas que se for não se oporá. Termina garantindo que a escolha do coletivo é feita por computador e não pode ser "manipulada de forma alguma". Assim, a afirmação do juiz de que não acredita na intenção noticiada - como quem diz que é inacreditável - é o mais longe que vai. Perante a insinuação pública, para mais atribuída a um destacado membro do sistema de justiça, de uma suspeita gravíssima sobre o seu tribunal, prefere fazer de conta que não percebeu.
Também o silêncio até agora total da Associação Sindical de Juízes (normalmente tão reativa a toda e qualquer crítica aos magistrados que representa, tão repudiante de tudo o que lhe pareça cheirar a "pressão") e do órgão que superintende a judicatura, o Conselho Superior de Magistratura, parece evidenciar que algo só passível de ser interpretado como infamante para os juízes - a insinuação de que se viciam sorteios nos tribunais e que os magistrados não são isentos e imparciais, podendo existir decisões estabelecidas à partida - é por estes recebida como nada tendo de especial.
A não ser, claro, que o que determina tal ausência de indignação pública seja, não o que é dito, mas quem diz. E a pessoa a quem a intenção é atribuída é Rosário Teixeira, o procurador que dirige a acusação a Sócrates. Sendo sabido que Sócrates e o processo em que é central extremam as perspetivas, a visão à lupa do sistema judicial assim propiciada só poderá ser desconsiderada por fanáticos. E o que se vê neste episódio (e outros) é aterrador. Se é a qualidade da pessoa, e eventualmente do processo em causa, a calar os expectáveis - obrigatórios, mesmo - protestos da judicatura, que dizer da pressão assim criada sobre quem irá decidir o recurso? Que dizer da justiça que podemos esperar neste processo - e portanto em todos os outros? E como olhar, à luz do labéu que a notícia lança sobre todos os juízes, o facto de aquele com quem Rosário Teixeira trabalha em tão noticiada sintonia não ter sido escolhido no tal aleatório sorteio da praxe mas se impor como único? Podemos suspeitar, também?

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