sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Leituras

 
Bartoon | Público


FERNANDA CÂNCIO

Esperar pela pancada

por FERNANDA CÂNCIO |Diário de Notícias


Disse Passos, no congresso da risota, que no meio da pancadaria - a de Molière e a outra - com que nos mimoseia há dois anos e meio as últimas arrochadas, mesmo se mais fracas, podem doer mais que as primeiras. Será? Parece é que já nada dói, ou nada já se sente, tal o estado de catalepsia em que o País mergulhou. O coma é tal, aliás, que Relvas, o Relvas que há 11 meses saiu, choroso, por "falta de condições anímicas", se animou a regressar de corpo à alma que é deste PSD. Aliás levou só um bocadinho mais de tempo que Gaspar, o ministro das Finanças que em julho reconheceu por escrito o falhanço da sua política e veio agora, impante, congratular-se no (seu) "milagre". E bastante mais que Portas, tão rápido a sair e reentrar que nisso (como em tanta outra coisa) ninguém o bate.
E, depois, de que últimas pancadas fala Passos, quando se anunciam quatro mil milhões de cortes (o mesmíssimo valor que se anunciava no início de 2013 como equivalendo à "reforma do Estado") e o mesmo FMI que arrepela os cabelos com a tragédia do nosso desemprego e nega o celebrado "milagre das exportações" prescreve baixar ainda mais os salários? Dizia esta semana o ministro Maduro, maduramente, que "é preciso pensar mais, refletir mais, tratar as coisas com mais profundidade." A gente já se contentava com um bocadinho menos de desplante. Veja-se por exemplo a notícia de ontem sobre o subsídio de desemprego.
Parece então que Governo e troika repararam ter a percentagem de subsídios anulados (por incumprimento das regras) vindo a descer, atingindo em 2013, ano do máximo histórico do número de desempregados, o valor mais baixo de sempre. Que concluem daí? Que os desempregados que recebem a prestação, apesar de serem submetidos a cada vez mais exigências, muitas delas gratuitas, humilhantes e persecutórias, se têm esforçado por cumpri-las? Que isso só pode querer dizer que estão desesperados e que o mercado de trabalho não tem mesmo lugar para eles?
Qual quê. Ante a evidência de diminuição da fraude, Governo e troika não desarmam: vão investir em cartas registadas para certificar que quem não responda a uma primeira convocatória em correio normal possa ver logo o subsídio cortado ao não responder à segunda; o número de anulações, dizem, vai compensar o gasto nos registos. E sabem isso como? Fizeram contas. Com base em quê? Isso agora: então não é bom de ver que há uma percentagem fixa de desempregados burlões (senão todos), excelmente determinada, e que só falta apanhá-los?
Realmente, não se imagina melhor forma de comemorar os 40 anos de um partido que faz uma paródia da social-democracia senão esta espécie de Estado social por equivalência, em que as prestações sociais existem para ser anuladas e a lei para acertar contas. Razão têm os líderes do PSD para rir, e Relvas para voltar: estamos mesmo no ponto.



FERREIRA FERNANDES
UM PONTO É TUDO

Jornalistas sóbrios e manchetes alcoólicas

por FERREIRA FERNANDES | Diário de Notícias
No DN colaborou em tempos Fernando Pessoa, um bêbedo. Um tipo que era apanhado, não poucas vezes, em flagrante de litro. Para desculpa do DN, naqueles tempos ainda não havia o arsenal de leis purificadoras que permite, hoje, o Correio da Manhã (salve, ó bíblia dos costumes morigeradores!) tirar os seus jornalistas da perdição. Um jornalista tipo CM vai para uma reportagem e salta-lhe ao caminho o advogado da empresa: "Fulano, vamos lá ao nosso exame de deontologia!" O advogado aponta a linha reta feita a giz que o jornalista, de braços abertos, tem de percorrer sem bambolear. Exame conseguido, o jornalista já pode ir fazer, por exemplo, a manchete de ontem do CM: "Pai de Sicrano em fuga por tráfico de droga". Não importa que o Sicrano, de 19 anos, não tenha culpa dos tráficos do pai. Leva com o seu nome, o traje de trabalho (Sicrano é jogador de futebol) e a foto na primeira página. Algumas almas piedosas podem não achar isto bonito, mas o importante, não é?, é que aquela manchete não foi feita por um bêbedo. Um jornal com manchetes alcoólicas, fontes anónimas e jornalistas sóbrios. E, suspeito, talvez outros jornais lhe sigam o exemplo. Infelizmente, eu, que sempre bebi pouco, tenho de declarar que nunca soprarei o balão numa redação. Cruzei-me com alguns camaradas talentosíssimos e bêbedos, e, esgotadas todas as tentativas de lhes chegar às canelas, quero guardar a última esperança de o conseguir com uns copos.

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