quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Leituras



 The New Yorker Cartoons




O jornalista chave na mão


Though this be madness, yet there is method in’t.
“Hamlet”, William Shakespeare
Não frequentar o bas-fond político-jornalístico, não ter actividade partidária e ser um displicente e distraído consumidor da actualidade permite-me manter uma ignorância que liberta a imaginação ingénua. Assim, ingenuamente, imagino que o Ricardo Costa se dá, ou deu, intimamente com Sócrates. Imagino que já se embebedaram juntos, adormecendo ao lado um do outro. Isto porque o mano Costa não perde uma ocasião para mostrar que conhece Sócrates de gingeira e de outros Carnavais. A forma que encontrou para transmitir essa informação consiste em anunciar que Sócrates é uma fraude e a causa da maior parte dos nossos males. Por exemplo, em 2009, numa entrevista feita do princípio ao fim em modo acintosamente febril, o mano Costa atirou a Sócrates esta pedrada: “O BPN é seu.” Temos de reconhecer que é uma brilhante ideia, mas não será igualmente uma manifestação da tal loucura shakespeariana que é puro método de assassinato de carácter, entre outros objectivos na agenda?
São muito poucos os que já tiveram, e alguma vez terão, o poder de escolher as parangonas do Expresso. Quando um desses ilustres se decide por uma coisa como “Processo de venda dos Mirós começou no Governo PS” podemos ter a certeza de que o ilustre está a contar com a constância das leis da gramática. A transitividade dos termos é perfeita, sendo que a mensagem que se pretende espalhar é a de que o “Governo PS começou o processo da venda dos Mirós“. E qual a relevância dessa informação, e independentemente da sua veracidade e exactidão, ao ponto de aparecer como a principal escolha editorial? Para o Expresso, o caso da semana era o das pinturas de Miró e a parte mais importante do dito estava na atribuição de uma responsabilidade primeira ao Governo anterior. Tal como já escreveu a Penélope, o exercício pretendia ilibar o actual Governo que, coitado, não só andava a arrastar um Memorando que não assinou, que não reconheceu como idêntico ao seu programa de desmantelamento do Estado social e que nada fez para que ele nos caísse em cima das cabeças e da carteira como, coitadinho, ainda tinha de suportar vitupérios por cumprir o que os malvados socráticos tinham planeado fazer. Quanto às ilegalidades agora cometidas, ao desvario da decisão e à cumplicidade de Cavaco com mais uma prova do abandalhamento do Estado, tudo para segundo plano ou debaixo do tapete. Como acontece quase sempre quando as difamações e calúnias são feitas em órgãos de comunicação ditos de referência, missão cumprida, Ricardo.
sátira que o mano Costa se sentiu obrigado a fazer para responder à defesa de Sócrates, Teixeira dos Santos e Gabriela Canavilhas, pelo menos, não passa de mais um ataque ad hominem embrulhado numa processo de intenções à la Feira das Galinheiras. Aproveita para malhar com gosto nos exercícios de memorização, contextualização e explicação a que Sócrates se dedica enquanto comentador e reforça o estigma: Sócrates é um mentiroso, para além de incompetente, que nos tenta impingir uma narrativa de maravilhas passadas ou esconde as suas responsabilidades na crise atrás da fórmula “o mundo mudou”. Não contente, o mano Costa resolve pensar pelas cabeças de todos aqueles que apanha pela frente, e, de repente, decreta que os Mirós estão umbilicalmente ligados a questões tão vastas ou pícaras como o tamanho da fraude no BPN ou a boataria acerca do falatório em conselhos de ministros. Culmina com uma típica falácia de irrelevância, fazendo alusão ao processo da privatização da TAP. Em suma, o seu texto é factualmente contraditório, é intencionalmente derrisório e aparece num espaço de opinião, não de estatuto editorial, o que o livra da obrigação (ou da tentativa) de ser intelectualmente honesto. Estamos perante um acto político.
Mas qual é o maior interesse, se é que algum, deste episódio? Quanto nos metemos no meio de uma briga para tentar separar os envolvidos corremos o alto risco de parecer estarmos a favorecer ou proteger só um dos lados – e, portanto, a sofrer represálias da parte que estava a ganhar ou que queria consumar a tareia. Falando por experiência própria, os infelizes que quisessem retirar do que escrevi entre 2005 e 2011 aquilo que pudesse ser catalogado como apoio às políticas do Governo iriam ter de se esforçar muito, muitíssimo. No entanto, tal não impediu que fosse incluído na lista dos avençados do “Gabinete onde se usavam técnicas dos serviços secretos”, pago para invadir as mentes da populaça a partir de um blogue lido por meia dúzia de maduros, a maior parte dos quais por afinidade prévia e os restantes para chafurdarem no ódio. O mero protesto contra a baixa política e cultura de golpadas a que se resumiu a luta da direita contra os Governos PS, sintetizada na diabolização de Sócrates, era o que bastava para ser alvo da cegueira e raiva tribal de que também se faz a experiência política, tão mais intensas e violentas quão menor for a literacia e a maturidade cívica. Neste episódio do mano Costa ressurge essa pulsão de obcecado antagonismo onde o adversário e a sua honra e palavra não merecem qualquer respeito. É a mesma lógica, explorada como nunca se tinha visto antes em Portugal, que levou à espionagem de um primeiro-ministro e à exploração das suas conversas privadas. Sócrates queria usar a PT para comprar a TVI e assim conseguir calar a Moura Guedes e abafar o Freeport, rezava a patranha que envolveu magistrados, políticos e jornalistas. Que não o tivesse ainda feito, e que fosse absurdo, mesmo inviável, que o conseguisse fazer era o que menos incomodava os autores da manobra – pelo contrário, quão mais fantasiosa e escabrosa fosse a suposta ameaça mais poder caricatural teria na opinião pública.
Ricardo Costa pode ter as suas idiossincrasias a funcionar a todo o vapor no que respeite à relação pessoal com Sócrates e que seja muito feliz com elas, mas quando as expressa profissionalmente, seja como director de um órgão de comunicação social ou como publicista, então o seu papel é maior do que ele próprio. Em Portugal não há o saudável hábito de vermos os editores a assumirem as suas preferências políticas. Em simultâneo, os gostos ficam obscenamente a descoberto em cada hierarquização e alinhamento das notícias e em cada elenco de comentadores seleccionado. O interesse deste episódio, portanto, está na exibição das malhas que o império tece. Um império que continua a manter Sócrates na berlinda por estarmos perante uma proposta irrecusável para certo tipo de jornalistas: qualquer um que queira lucrar, e dar a lucrar à oligarquia, encontra um espaço mobilado e pronto a usar de onde pode fazer tiro ao boneco sem receio de qualquer represália. São os jornalistas chave na mão.




"A oportunidade de aplicar um programa político há muito ambicionado"


• Fernando Medina, Uma tragédia em três atos :
    ‘«Portugal mais perto da saída à irlandesa». Era esta a manchete de anteontem do Negócios. Há quem queira ver nisto um «milagre económico português», mas provavelmente estamos perante o último ato da tragédia política, económica e financeira que se abateu sobre o país nos últimos anos.

    O primeiro ato foi o pedido de resgate e a chegada da Troika. No contexto da crise global e sistémica que atingiu a Zona Euro, está hoje amplamente demonstrado que a Europa queria para Portugal uma solução diferente do resgate à Grega ou à Irlandesa. Essa solução diferente estava encontrada e negociada, e foi conscientemente rejeitada pelos partidos da maioria. A vinda da Troika foi pois uma opção clara e consciente de vastos sectores em Portugal, numa aliança explícita entre aqueles que procuravam chegar avidamente ao poder e os que, na direita liberal, viram a oportunidade de aplicar um programa político há muito ambicionado. Foi assim que Portugal entrou num processo profundamente doloroso a nível económico, social e político.

    O segundo ato desta tragédia foi a forma escolhida para a execução do memorando de entendimento. Em vez de seguir uma estratégia prudente e flexível, assente na manutenção dos diferentes equilíbrios e numa atitude de negociação tensa e permanente com a Troika, o Governo optou por assumir como sua a leitura de que a "culpa da crise" estava nos países deficitários do Sul e no peso do Estado Social. O "front-loading" orçamental e a desvalorização salarial acelerada não resultaram sobretudo de uma imposição externa. Foram antes opções políticas conscientes de um projecto político e ideológico que tem no combate ao Estado e na desvalorização interna (e não no combate à crise) o seu elemento central.

    Os resultados desta estratégia são, infelizmente, bem conhecidos. Nenhuma das metas iniciais do memorando de entendimento foi cumprida, o défice continua elevado e não teve redução sustentável, a dívida disparou, a recessão foi muito mais profunda e o desemprego mantém-se em níveis socialmente insustentáveis. E mais importante, apesar de toda a retórica em torno das reformas estruturais, não assistimos a nada que possa indiciar uma qualquer melhoria da capacidade competitiva da economia portuguesa e da sua capacidade de crescimento. Pelo contrário, vários indicadores apontam para que estejamos pior ao nível do que são hoje modernos factores de competitividade (a imigração de quadros qualificados ou o investimento em ciência são dois exemplos apenas). Em síntese, a aplicação do programa constituiu para a direita liberal a oportunidade de concretizar um velho sonho, mas não permitiu ao país qualquer melhoria na sua capacidade de vencer a crise.

    Já com o fim (formal) do programa de ajustamento à vista entramos no terceiro ato desta tragédia. Nem o Governo português nem os governos europeus querem ouvir falar em mais resgates. Passos e Portas, motivados pela obtenção de ganhos políticos de curto prazo ("nós retiramos de cá a Troika e agora vamos melhorar"), contam com a cumplicidade pré-eleitoral da Europa para uma «saída limpa». Trata-se, na verdade, de uma saída sem rede, num momento em que o estado do país não se compadece com voluntarismos que podem ter efeitos irremediáveis.

    Na verdade, o peso da dívida pública no PIB que era de 70% em 2008 está hoje acima dos 125%. Na emissão de dívida desta semana (mais uma para preparar a «saída limpa») os juros superavam os 5%, mais do que aquele (já alto) que atualmente pagamos à Troika e muito mais alto do que as nossas condições realisticamente permitem sustentar. Ora, como nada nos permite antecipar níveis de crescimento económico (e de redução do défice) compatíveis com este nível de endividamento e de taxa de juro, é bem possível que nos estejam a empurrar para o abismo. E que estejam, ao mesmo tempo, a assegurar a entrada do país num período de "austeridade perpétua", agora sustentada pela necessidade de "não deixar a Troika regressar". De novo a aliança explícita entre os que procuram a todo o custo manter o poder e aqueles que o procuram para aplicação de um programa ideológico que não de superação da crise.

    Vítor Gaspar admitiu recentemente que se apercebeu da «força e da relevância da política» após a reação que a demissão de Paulo Portas provocou nos mercados. A história já aconteceu antes e repete-se agora, a propósito da «saída à irlandesa». Estamos a falar «da força e da relevância da política», mas da política de «p» pequeno, i.e., da prevalência do interesse próprio dos actores políticos sobre o interesse do país. Pois este último impunha outras soluções.’

Exige-se ao PS opções claras e difíceis

Na semana passada André Freire e Pacheco Pereira publicaram neste jornal dois textos de inegável importância tendo por objecto a mesma questão e apontando soluções diferentes para a resolução da mesma.
Para Freire as grandes interrogações consistem em saber o que fazer com os calculados 20% de portugueses inclinados a votarem nos partidos à esquerda do PS e qual a possibilidade prática de constituição de uma coligação governamental entre os vários partidos da esquerda portuguesa. Para Pacheco Pereira o problema coloca-se de forma diferente: desvalorizada a pertinência operativa da dicotomia esquerda/direita, quer na perspectiva  analítico-descritiva da realidade, quer enquanto modelo de enquadramento de uma confrontação política futura possível, o antigo líder parlamentar do PSD preconiza a vantagem da celebração de um entendimento programático entre o PS e os sectores críticos do PSD, e do próprio CDS, em torno de um projecto de Governo realista, preocupado com a superação das debilidades estruturais do país, mas a concretizar de acordo com aquilo que designa, com inteira propriedade, como “o tempo próprio das democracias”. É certo que Pacheco Pereira apresenta como condição prévia para o sucesso de uma iniciativa desta natureza a remoção das actuais lideranças dos partidos em questão. É a sua opinião, decerto respeitável, mas não determinante para a avaliação da tese geral em equação. Esta consiste na ideia de que é necessária a construção de uma nova solução política agregadora do centro esquerda e do centro direita à volta de um programa reformista, voltado para a resolução dos problemas económicos e financeiros estruturais e apostada num outro posicionamento face aos centros de decisão europeus.
Ora, malgrado a óbvia divergência destas duas posições, ambas acabam por apontar, ainda que de forma não clara, para o reconhecimento do papel de charneira que o Partido Socialista pode, a breve prazo, vir a desempenhar na vida política portuguesa. De alguma forma isso reenvia-nos para os tempos inaugurais do regime democrático e, muito em particular, para a fase imediatamente pós revolucionária em que estava em causa a consolidação de um modelo de organização política de natureza democrático-liberal de tipo ocidental. Curiosamente, acaba de ser publicado a esse respeito um excelente livro da autoria de um jovem historiador, Daniel Castaño, intitulado Mário Soares e a Revolução, que nos fornece uma ampla informação sobre o papel decisivo desempenhado pelo então líder do PS no sentido da concretização de uma opção democrática, potencialmente contrariada quer por sectores esquerdistas, quer por nostálgicos do antigo regime. Da leitura dessas páginas ressalta uma evidência - em circunstâncias especialmente difíceis, próprias de um período pós revolucionário, Mário Soares agiu com um discernimento excepcional alicerçado em duas orientações fundamentais: uma incorruptível fidelidade aos princípios fundamentais ínsitos a uma visão republicana, democrática, liberal e socialista da organização da sociedade e um permanente pragmatismo inteligente na abordagem dos acontecimentos concretos, de modo a assegurar a prevalência dos equilíbrios a que as circunstâncias aconselhavam. O que impressiona nesse comportamento é precisamente essa capacidade de conciliar convicções fortes e determinações absolutas com a recusa de qualquer tipo de sectarismo identitário de natureza puramente ideológica. Isso verificou-se no relacionamento com outros partidos políticos e com os vários grupos militares que então detinham inegável importância pública. Nessa época o PS funcionou claramente como um partido charneira, impedindo a instauração de uma ditadura de orientação comunista, impossibilitando a consumação de uma ilegítima tutela militar e obstando ao sucesso de qualquer projecto restauracionista fomentado pela extrema direita. Para atingir tal objectivo Mário Soares usou de uma imaginação táctica prodigiosa que nunca resvalou para qualquer tipo de oportunismo pela razão da sua constante subordinação a uma visão clara de tipo de regime político e económico pretendido. Ora isso constitui uma preciosa lição para os dias de hoje.
Tantos anos decorridos, num contexto reconhecidamente diferente, depara-se ao PS uma interpelação histórica que revela alguma consonância com o período atrás referido. Face à profunda crise europeia e ao estado actual do país o PS é chamado a assumir um papel determinante entre um centro direita agarrado a uma herança democrático social que o coloca em colisão com a presente maioria governamental e uma esquerda mais radical, ainda nominalmente revolucionária, mas felizmente condenada à opção por um caminho reformista. Tal circunstância confronta o PS com uma enorme responsabilidade histórica que não pode ser continuamente iludida. Para alguns sectores do partido, prisioneiros de um certo espírito de jogos florais infecundos, tudo se resume a uma oposição entre sectores posicionados mais à direita e outros colocados mais à esquerda. Dessa discussão não resultará nada de útil, dada a indigência doutrinária subjacente a uma tão primária representação dicotómica da realidade partidária. Curiosamente esse tipo de discussão apenas favorece quantos estão empenhados em desvalorizar a plena participação do Partido Socialista na construção de uma séria alternativa ao poder vigente. O que está em causa é uma outra questão, a de saber se o Partido Socialista detém neste momento recursos, qualidades e capacidade de mobilização suficientes para liderar um amplo movimento alternativo susceptível de aglutinar a prazo a direita crítica, que Pacheco Pereira refere, e parte substancial da esquerda até aqui governamentalmente não representada que André Freire enuncia. Esse é que vai ser o próximo tema determinante da evolução da nossa vida política. Contrariamente ao que se possa levianamente pensar isso não convoca o Partido Socialista para uma atitude híbrida, relativamente ambígua e muito hesitante. Exige opções claras e difíceis. Opções essas que se devem manifestar já nas próximas eleições europeias. Ora isso é muito mais importante do que a questão da escolha de um conjunto de personalidades para a constituição de uma lista eleitoral. Também é muito mais difícil. Só que os partidos ou sabem estar à altura das suas responsabilidades ou estão condenados a sucumbir perante a história. Estou certo que não vai ser esse o destino do Partido Socialista.


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