Da equidade e do karma
por Fernanda Câncio / Diário de Notícias
Temos aqui um pequeno problema de lógica, não? Defender uma reponderação das pensões em pagamento de acordo com as regras atuais de sustentabilidade não é compaginável com tratar por igual desempregados com uma carreira contributiva de 30 anos e quem desconta há um. Não se pode dizer, como diz Passos, que muitos pensionistas não descontaram o suficiente para o que recebem e ignorar que os desempregados mais velhos descontaram muito mais que os novos.
Mas o Governo não põe as orelhas de burro sozinho. O relatório do FMI e o da OCDE incorrem na mesma contradição - o FMI chega mesmo a propor que o subsídio de desemprego seja igual para todos (419 euros) ao mesmo tempo que se choca com a disparidade entre as pensões da CGA e as do regime geral. E se o trabalho da OCDE é mais honesto que o embuste do FMI (não era difícil), não deixa de enfermar dos mesmos problemas de base: primeiro, aceitar como óbvio que é preciso cortar mais, sem sequer estabelecer a base dessa necessidade - como se esta fosse inquestionável. Depois, trabalha com base na informação fornecida pelo Executivo, sem cuidar de saber se é verdadeira. Por exemplo: diz a OCDE que à redução do valor do subsídio de desemprego, à imposição de uma redução de 10% após seis meses de prestação e ao encurtar do seu período máximo (de que gozavam os mais velhos) correspondeu um alargamento a sectores até então sem proteção, como os profissionais por conta própria e a recibos verdes. Na verdade, os profissionais liberais e empresários que fiquem sem retribuição só poderão - se puderem - aceder ao subsídio a partir de 2015, enquanto os cortes nos subsídios dos desempregados mais velhos estão em vigor desde 2012.
É mau terem partido. E péssimo voltarem
por Ferreira Fernandes / Diário de Notícias
As vezes, a ferida dolorosa não deixa ver chegar uma doença mortal - no dia em
que temos um panarício não nos apetece ir fazer análises ao cancro do cólon. As
manchetes só sobre crise económica tapam-nos a mecha a ir para o paiol. Já ouviu
falar dos belgas na Síria? Jovens de Bruxelas e Antuérpia partem para a guerra
santa. Segundo a universidade londrina King"s College, há 500 europeus na Síria
a combater. Desses, diz o jornal Le Monde, 300 são belgas. Depois da cerveja e
chocolates, a outra especialidade: ser mobilizado pela Al-Qaeda. De facto, os
combatentes belgas vão para a brigada Al-Nosra, o principal grupo djihadista
sírio. Termo de comparação: aquele Abu Sakkar que arrancou o coração de um
soldado governamental e o trincou (há vídeo) é só chefe da brigada Al-Farouq,
que é perseguida pelos da Al-Nosra por serem moderados. Os emigrantes muçulmanos
belgas estão desolados com a facilidade de recrutamento dos seus filhos em
Bruxelas - é conhecido o caso de dois rapazes de 14 e 16 que partiram. Esses
pais, naturalmente, anseiam pelo regresso. Ora, isso não será uma boa notícia
para todos. A Argélia ganhou uma guerra civil com os seus jovens regressados do
Afeganistão. Desta vez, não serão só jovens combatentes que partiram de cabeça
quente e voltarão com ela a ferver. É que voltam para o coração da Europa, para
o Estado e nação mais frágeis da União. Junte-se a isso a demografia: em 2030,
Bruxelas tem maioria muçulmana.
O fim da farsa
por Fernando Medina
Jornal de Negócios
Chegados ao momento da verdade, a realidade impõe-se como sempre. Como o Governo insistiu em manter a estratégia - apesar da derrocada da economia, do emprego e do descontrolo do défice e da dívida – teve mesmo de apresentar as medidas.
A sucessão de acontecimentos das últimas semanas – Conselhos de Ministros intermináveis e inconclusivos, comunicação de medidas pelo PM com omissão de todos os detalhes relevantes, ou o recente folhetim sobre a "TSU dos pensionistas" – é bem reveladora do bloqueio a que nos conduziram as opções de política económica do Governo.
Na verdade, o Governo comprometeu-se com o que não devia (um novo e duríssimo pacote de austeridade sobre uma economia em recessão profunda e prolongada) e comprometeu-se também com o que sabia não ter condições políticas de sustentar (um corte generalizado nas pensões de todos, em particular na administração pública, e a redução das prestações sociais).
Do meio da opacidade e da dissimulação, que são hoje marcas na comunicação do Executivo, sabemos já coisas importantes. Em 2014, as novas medidas de austeridade valerão algo entre 1,7 e 2,1% do PIB, o que só por si fará prolongar a recessão para 2014, como já destacou o Banco de Portugal em recente estudo. Quando necessitávamos urgentemente de estancar a verdadeira sangria económica e social em que se transformou o nosso processo de ajustamento, o que temos é a reafirmação do caminho da tragédia.
Mas sabemos mais. Sabemos que a poupança prevista de €740 M nas pensões da Caixa Geral de Aposentações representa o equivalente a um corte de 10% em "todas" as pensões actualmente em pagamento, incluindo pensões mínimas, de sobrevivência ou invalidez. Se houver exclusão de alguns grupos de pensionistas o corte para os restantes será maior. Sabemos que a redução adicional de €300 M na segurança social (para além das pensões) se traduzirá em novos cortes nos subsídios de desemprego, doença ou abono de família. E sabemos também que os cortes nos consumos intermédios (e os específicos sobre a saúde), atingirão os medicamentos e os meios complementares de diagnóstico. Sabemos que nascerão as novas figuras do "salário zero" e da "rescisão voluntária à força" na administração pública. Isto tudo para além, claro está, da "TSU dos pensionistas", que corresponde financeiramente a algo próximo da extensão da Contribuição Especial de Solidariedade a todos os que auferem pensões acima dos 600 euros mensais.
Muitos verão tudo isto com surpresa, mas a verdade é que as escolhas fundamentais foram no essencial fechadas na 5ª avaliação, realizada em meados do ano passado. Nessa altura, como forma de compensar o desvio orçamental causado pela profunda recessão do ano passado, o Governo decidiu, por sua iniciativa, inscrever junto da Troika o compromisso de redução "estrutural da despesa" em €4000 M.
Durante os meses que se seguiram o Governo foi camuflando a realidade, deleitando as tropas esfrangalhadas pelo "enorme aumento de impostos" com a ideia de uma mítica "Reforma do Estado", o agora equivalente funcional às "gorduras" da campanha eleitoral. Tivemos de tudo nesses meses: pseudo-estudos do FMI, conferências de pseudo-sociedade civil, centenas de discursos e proclamações sobre a importância da redução do Estado para a saída da crise, patéticos apelos ao "consenso" em torno de proposta nenhuma e até a designação de Paulo Portas como o "grande arquitecto" da "Reforma do Estado". E tivemos também, de forma mais silenciosa, a reafirmação do compromisso dos cortes, quer na 6.ª quer no início da 7.ª avaliação.
Chegados ao momento da verdade, a realidade impõe-se como sempre. Como o Governo insistiu em manter a estratégia - apesar da derrocada da economia, do emprego e do descontrolo do défice e da dívida – teve mesmo de apresentar as medidas. Como a despesa pública são, no essencial, rendimentos das famílias - salários e pensões - é aí que estas estão de novo.
Acaba assim a farsa da "Reforma do Estado". Mas continua a tragédia. De um país inteiro que vive cada dia sem qualquer perspectiva de futuro.
Economista. Deputado do PS
Na verdade, o Governo comprometeu-se com o que não devia (um novo e duríssimo pacote de austeridade sobre uma economia em recessão profunda e prolongada) e comprometeu-se também com o que sabia não ter condições políticas de sustentar (um corte generalizado nas pensões de todos, em particular na administração pública, e a redução das prestações sociais).
Do meio da opacidade e da dissimulação, que são hoje marcas na comunicação do Executivo, sabemos já coisas importantes. Em 2014, as novas medidas de austeridade valerão algo entre 1,7 e 2,1% do PIB, o que só por si fará prolongar a recessão para 2014, como já destacou o Banco de Portugal em recente estudo. Quando necessitávamos urgentemente de estancar a verdadeira sangria económica e social em que se transformou o nosso processo de ajustamento, o que temos é a reafirmação do caminho da tragédia.
Mas sabemos mais. Sabemos que a poupança prevista de €740 M nas pensões da Caixa Geral de Aposentações representa o equivalente a um corte de 10% em "todas" as pensões actualmente em pagamento, incluindo pensões mínimas, de sobrevivência ou invalidez. Se houver exclusão de alguns grupos de pensionistas o corte para os restantes será maior. Sabemos que a redução adicional de €300 M na segurança social (para além das pensões) se traduzirá em novos cortes nos subsídios de desemprego, doença ou abono de família. E sabemos também que os cortes nos consumos intermédios (e os específicos sobre a saúde), atingirão os medicamentos e os meios complementares de diagnóstico. Sabemos que nascerão as novas figuras do "salário zero" e da "rescisão voluntária à força" na administração pública. Isto tudo para além, claro está, da "TSU dos pensionistas", que corresponde financeiramente a algo próximo da extensão da Contribuição Especial de Solidariedade a todos os que auferem pensões acima dos 600 euros mensais.
Muitos verão tudo isto com surpresa, mas a verdade é que as escolhas fundamentais foram no essencial fechadas na 5ª avaliação, realizada em meados do ano passado. Nessa altura, como forma de compensar o desvio orçamental causado pela profunda recessão do ano passado, o Governo decidiu, por sua iniciativa, inscrever junto da Troika o compromisso de redução "estrutural da despesa" em €4000 M.
Durante os meses que se seguiram o Governo foi camuflando a realidade, deleitando as tropas esfrangalhadas pelo "enorme aumento de impostos" com a ideia de uma mítica "Reforma do Estado", o agora equivalente funcional às "gorduras" da campanha eleitoral. Tivemos de tudo nesses meses: pseudo-estudos do FMI, conferências de pseudo-sociedade civil, centenas de discursos e proclamações sobre a importância da redução do Estado para a saída da crise, patéticos apelos ao "consenso" em torno de proposta nenhuma e até a designação de Paulo Portas como o "grande arquitecto" da "Reforma do Estado". E tivemos também, de forma mais silenciosa, a reafirmação do compromisso dos cortes, quer na 6.ª quer no início da 7.ª avaliação.
Chegados ao momento da verdade, a realidade impõe-se como sempre. Como o Governo insistiu em manter a estratégia - apesar da derrocada da economia, do emprego e do descontrolo do défice e da dívida – teve mesmo de apresentar as medidas. Como a despesa pública são, no essencial, rendimentos das famílias - salários e pensões - é aí que estas estão de novo.
Acaba assim a farsa da "Reforma do Estado". Mas continua a tragédia. De um país inteiro que vive cada dia sem qualquer perspectiva de futuro.
Economista. Deputado do PS
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