PIERRE
BONNARD Flores e livros 1912 |
Antes mesmo
de José Sócrates iniciar as suas intervenções regulares na RTP, muitos sectores
do país mediático revoltaram-se contra as suas "narrativas". Afinal de contas,
de que falamos quando falamos de narrativas? — esta crónica de televisão foi
publicada no Diário de Notícias (5 Abril).
Podemos, evidentemente, acomodar-nos no regaço
social da estupidez e considerar que José Sócrates na RTP1, a fazer comentário
político, não passa de uma encarnação satânica. Podemos até fingir a mais cega
candura, acreditando que todos, mas mesmo todos, os comentadores políticos que
enxameiam o espaço televisivo, além de deixarem nas salas de caracterização as
heranças do seu passado político e os sintomas (benignos, por certo) das suas
filiações partidárias, não passam de crianças incrédulas empenhadas em
conduzir-nos, pé ante pé, ao paraíso da virgindade ideológica.
Ainda assim, a última semana foi
desconcertante: afinal, porque é que muitos pensadores do nosso mundo pouco
pensante se sentiram tão abalados com o uso da palavra “narrativa” por José
Sócrates? A pergunta pode ser formulada de modo mais pedagógico: porque é que,
quando alguém diz alguma coisa consistente e inteligente, a arte menor da
chacota se manifesta com tão acomodada exuberância?
Falo por mim. Ao colocar as narrativas no
coração do espaço televisivo, José Sócrates fez mais pela crítica de televisão
do que eu, em muitas décadas de prosa, poderia ambicionar. Entenda-se:
reconhecer a existência de narrativas (políticas, jornalísticas, etc.) não é o
mesmo que chamar “mentiroso” seja a quem for; é antes lembrar que a aproximação
da verdade envolve um labirinto de olhares, visões e linguagens em que cada um
afirma, mesmo quando o nega, o relativismo do seu posicionamento no mundo. É
triste, mas é assim: as lições de Saussure, Freud ou Barthes, ao longo do século XX, não bastaram;
precisamos de José Sócrates para nos lembrar que a nossa dimensão humana só o é
porque se enraíza na transfiguração do mundo em narrativa(s).
Por uma vez, em televisão, assistimos assim ao
consumar de um gesto genuinamente político: alguém que vem dizer que a política
não se faz de inquestionáveis transparências, proclamando, tão só: “Eu vejo o
mundo assim”. No limite, defendendo o seu direito de expressão, José Sócrates
estava também a defender o direito dos outros à elaboração das suas
narrativas.
por João Lopes
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