sábado, 17 de janeiro de 2015

Francisco, dieudonné

por FERNANDA CÂNCIO  | Díário de Notícias

As pessoas provocam e há reações. Não se pode brincar com a religião dos outros. Não se pode insultá-la ou rir dela. Não se deve reagir com violência mas se alguém, mesmo um amigo, insulta a minha mãe deve esperar um murro - é normal." Quem disse isto, e a propósito da chacina no Charlie Hebdo? Pista: foi uma autoridade religiosa. Podia, claro, ser uma autoridade religiosa muçulmana, várias disseram coisas parecidas; mas não. Foi o chefe da igreja católica. Sim, o papa Francisco, sempre tão amoroso, não só "justifica" o ataque ao jornal francês em que 11 pessoas foram mortas e várias gravemente feridas com a "provocação", o que já é desprezível, nele como em qualquer pessoa; faz mesmo a apologia da violência.
Qual apologia de violência, que exagero, leio no Twitter e no Facebook: "Então, agora dar um murro é violência? Aliás na mesma conversa o papa frisa que matar pessoas em nome de Deus é uma aberração, portanto não justifica as mortes." Não quero ser chata, mas quando as pessoas se veem na necessidade de certificar que o papa não defende a chacina de pessoas por fazerem caricaturas a gozar com religião só podem estar mesmo muito desesperadas. Portanto, defende só a violência física, é isso? Assim por exemplo aquilo que está a acontecer ao blogger Raif Badawi na Arábia Saudita, condenado a mil chicotadas por "insultar o islão"? Deve ser aceitável, até porque as chicotadas, decerto para que não morra, são administradas em prestações de 50 ao longo de 20 semanas.
Também muito pertinente é a acusação de fanatismo - a quem, note-se, "ataca o papa por causa de uma frase infeliz". É o chamado argumento (desculpem, estou em França) mise en abyme. O papa promete pancada a quem se meter com a religião mas os fanáticos são os outros; OK. O mufti do Egipto também acha: disse anteontem que a capa do CH desta semana "é um ato racista que incita ao ódio e irá irritar os muçulmanos de todo o mundo." Aliás, o Charlie Hebdo sempre foi acusado de "fanatismo ateu". Como se constata, é um fanatismo muito perigoso, até mortal - para quem supostamente o professa.
Há, por fim, quem garanta que o papa estava na reinação. É ele e aquele comediante francês, Dieudonné (tradução: Deusdado, ou dado por deus), que escreveu no Facebook "Sinto-me Charlie Coulibaly" - apelido do homem suspeito de ter matado quatro pessoas no minimercado judaico - e está acusado formalmente pelo Ministério Público francês de "apologia do terrorismo". Dieudonné, claro, tem um historial de antissemitismo e quatro das pessoas mortas por Coulibaly eram judias, o que torna a frase dele deliberadamente explosiva, dada a comoção que se vive em França. Felizmente que a instituição que o papa chefia não tem historial antissemita ou de perseguição, tortura e morte dos que não professam a sua religião, e que Francisco é uma pessoa sem qualquer influência ou responsabilidade, senão era um sarilho.

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