terça-feira, 7 de outubro de 2014

Leituras



 Moscou, Kremlin, Rússia, 1800s


Estado e pequenas pátrias

por ADRIANO MOREIRA | Diário de Notícias


Quando o presidente Wilson estabeleceu, e fez aprovar, o princípio de cada nação ter direito a assumir-se como Estado, não parece duvidoso que visava a liberdade dos povos, que antes da fundação da Sociedade das Nações viviam, designadamente na Europa, geralmente submetidos a impérios, em que nem a igualdade das comunidades nem a igualdade dos direitos humanos eram regras invioláveis. A dissolução dos impérios, que hoje começa a reclamar a atenção dos historiadores e politólogos, ganha relevo porque a extinção política desses impérios não apagou necessariamente as memórias nem, em todos os casos, impediu seguramente o eventual sentimento de ser uma perda reparável a favor do antigo poder dominante.
O problema suscitado pela definição do novo conceito estratégico nacional da Rússia, que pesa no agravamento de outras ameaças crescentemente mais inquietantes, esclarece a multiplicação de estudos sobre o passado que as grandes guerras mundiais deram por remetido para o arquivo morto, sucedendo porém que o princípio de Wilson, nunca completamente abrangente de todos os povos, é agora recordado porque Estados plurais, sem qualificação de impérios, mas multinacionais, se encontram perante o facto de que, naquilo que já chamam as pequenas pátrias, despertam movimentos consideráveis no sentido de também serem Estados-nações, afetando, quando não dissolvendo, a unidade em que viveram na articulação de vários séculos. É já suficientemente do domínio da opinião pública o conjunto de casos com que a própria Europa se defronta, neste caso não podendo omitir-se que, não já um iImpério, mas a democrática União Europeia, é um dado importante do problema.
Até agora o caso de estudo mais referenciado era o da Escócia, e supomos que há várias razões para que seja um caso de estudo, não apenas o consequencialismo do facto na organização interna do Estado em que permanece, mas também em relação à União Europeia, porque o contágio de outros pode levar a resultados diferentes da votação no Reino Unido. Além de que, como já foi observado, se o sim dos escoceses teria sido definitivo, o não tem uma dimensão insuficiente para que a experiência não volte a ser repetida. Mas não ficam por aqui as inquietações, porque o debate eleitoral parece não ser duvidoso que implantou a necessidade de rever o regime constitucional britânico, com a urgência de se definir em os interesses comuns e regionais, com titularidades de poder diferentes e órgãos do poder com funcionamento articulado e não conflituoso.
Mas a própria União Europeia, se o fenómeno das pequenas pátrias se avolumar, terá de resolver o problema das adesões e pertenças, o que não será fácil tendo em conta a ineficácia que a situação atual já demonstra na manutenção da vigência efetiva de alguns princípios fundamentais da organização adotada no Tratado de Lisboa, cujas falhas de funcionamento, falta de articulação com os povos e parlamentos nacionais, já tem consequências negativas que chegam para a perplexidade em que os interessados se encontram quanto às políticas, que já eram gravíssimas no que respeita à economia, finanças e carências sociais, e agora se encontra perante uma circunstância internacional agravada na área da segurança externa. E também interna, pelo descuido com que foram reguladas as imigrações, acumulando as comunidades não integradas, e já demonstradamente atingidas por infiltrações do terrorismo, com mais a surpresa de europeus terem aderido ao método. Os temas da segurança e defesa, interna e externa, crescem de exigência numa área em que os recursos financeiros são escassos, e a desatenção para a hierarquização interna da União é visível, perante tantos movimentos que se conjugam para fazer crescer o desamor ao projeto europeu e agravar a falta de vontade no sentido de finalmente ter um conceito estratégico para o futuro. É tempo de considerar com profundidade e realismo o tema da segurança autónoma, e fixar doutrina segura para a solidariedade atlântica. Definitivamente, o terrorismo é um problema mundial.




Westminster



Festa das ideias e da liberdade em Lisboa

Em boa parte porque são imperfeitas, a liberdade e a democracia são de longe preferíveis às alternativas.


“À procura da liberdade” foi o título escolhido para a edição deste ano da conferência anual da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Teve lugar na sexta-feira e sábado passados, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
 “Festa das ideias e da liberdade” foi a expressão que ouvi de muitos participantes para designar o que se passou em Belém. Parece-me uma excelente descrição de uma excelente iniciativa — tão rara entre nós — que mobilizou seguramente mais de um milhar de pessoas, durante dois dias.
Não me é seguramente possível tentar resumir aqui a variedade dos temas e pontos de vista do encontro. Mas talvez seja legítimo exprimir aqui algumas opiniões pessoais sobre alguns dos temas que estiveram em debate.
No centro do programa — cuidadosamente concebido por uma equipa presidida por Jaime Gama — estava(m) a(s) ideia(s) de liberdade e as suas complexas relações com outras ideias estimáveis, como a de democracia, ou igualdade, ou virtude, entre muitas outras.
Embora existam vários conceitos de liberdade, parece-me difícil dar-lhe sentido distintivo sem reconhecer um núcleo central: ausência de coerção intencional por terceiros. É uma definição apropriadamente negativa, que designa uma esfera de inviolabilidade da consciência da pessoa — de cada pessoa e de todas as pessoas. A liberdade mais fundamental é por isso a liberdade de consciência. A partir dela decorrem todas as outras: liberdade de religião, de expressão, de associação, de participação, etc.
Ao contrário do que possa parecer, esta ideia não é recente, nem sequer moderna. No Ocidente, ela é muito antiga. Resulta de um encontro feliz entre a tradição grega e a mensagem cristã. Vários autores têm recentemente voltado a recordar o contributo decisivo do cristianismo para a ideia de liberdade da consciência da pessoa — fundada na igual dignidade das pessoas, criadas à imagem e semelhança de Deus.
É hoje frequente designar esta liberdade de consciência como liberdade de escolha. É uma formulação possível, embora tenha dado origem a múltiplos mal-entendidos. É por vezes dito que, para haver “verdadeira” liberdade de escolha, terão de existir escolhas com valor e terá de haver informação suficiente para escolher. Vejo com muita reserva essas qualificações da liberdade de consciência.
Elas podem abrir caminho à atribuição a alguma autoridade suprapessoal, ou colectiva, do poder de decidir em que condições específicas é que as pessoas estão habilitadas, ou têm real capacidade, ou “sabem” realmente escolher. Esse caminho pode conduzir a severas restrições da liberdade de consciência, em nome de uma “doutrina certa”, ou de “uma educação apropriada”, quando não de uma “reeducação apropriada”. Julgo que esse caminho de limitação da simples liberdade de consciência, em nome de uma alegada “verdadeira liberdade” (ou talvez de uma “liberdade devidamente esclarecida”), foi tragicamente simbolizada por Jean-Jacques Rousseau — e pelo seu equívoco conceito de “vontade geral” que deve “obrigar os indivíduos a serem livres”.
O equívoco de Rousseau esteve, em meu entender, na origem da funesta Revolução Francesa de 1789 e, numa versão ainda mais extremada, da revolução soviética de 1917. Foi o equívoco de Rousseau que abriu caminho a um entendimento da democracia como vontade colectiva que pode (quando não deve) ter precedência sobre a liberdade de consciência da pessoa. É isso que explica que as ditaduras comunistas tenham sido autodesignadas por “democracias populares” e que a Alemanha de Leste fosse designada por “República Democrática Alemã”. Também Mussolini, num célebre artigo na Enciclopédia Italiana, argumentou que o fascismo era mais democrático do que as “oligarquias capitalistas”.
Pelo contrário, nas democracias mais antigas e mais duradouras — de que um bom símbolo será seguramente o Parlamento de Westminster — o poder da maioria em democracia não foi entendido como tendo precedência sobre a liberdade de consciência da pessoa. Entre os povos de língua inglesa, a democracia não resultou da substituição do governo absoluto do rei pelo governo absoluto do povo. A democracia emergiu da gradual extensão do sufrágio em regimes que não eram absolutos e já eram limitados — pela lei e pelo Parlamento (ainda que este fosse baseado em sufrágio não universal). A Magna Carta de 1215 é um símbolo destes princípios.
Este entendimento de democracia como governo limitado pela lei que presta contas ao Parlamento é hoje felizmente dominante entre nós. Resulta da vitória das democracias liberais sobre os totalitarismos nacional-socialista e comunista do século XX. Supõe que a esfera política e estatal é ela própria limitada. Para além dela existem múltiplas associações, livres e privadas, da sociedade civil — que não podem nem devem ser comandadas pelo Estado, mesmo democrático.
Este conceito de democracia não garante um bom governo. Apenas garante que os maus governos poderão ser afastados sem violência. Tal como o conceito de liberdade de consciência não garante que as escolhas dela decorrentes sejam boas. Apenas garante que as más escolhas não poderão ser impostas a todos. A liberdade e a democracia são, por este motivo, inevitavelmente imperfeitas. Mas, como recordou Winston Churchill, em boa parte porque são imperfeitas, a liberdade e a democracia são de longe preferíveis às alternativas.


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