sexta-feira, 9 de maio de 2014

Leituras



Como sabemos? Explica lá isso

Nos primeiros meses de 2011 - ou mais precisamente, desde o resgate irlandês em dezembro de 2010 - que José Sócrates esperou desesperado pela criação de algum mecanismo que afastasse Portugal de um resgate clássico. Fê-lo tarde e a más horas, como sabemos, e tendo gasto de mais e sem olhar à dívida, como sabemos ainda melhor. Fê-lo, em poucas palavras, numa posição de enorme fraqueza.
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O Ricardo não é bronco como o Monteiro, mas igualmente se passeia pelo jornalismo de opinião sofrendo de bronquite crónica. Daí ter sucedido ao outro, para se manter um padrão do agrado do Balsemão, o militante nº 1 do PSD.
O Ricardo tem como um dos maiores prazeres da sua vida profissional, pelo menos dessa, poder tratar Sócrates como a fraude que ele diz que é. Embora não seja propriamente uma originalidade entre publicistas direitolas, essa pulsão até poderia ser útil. Porque sempre que se consegue demonstrar uma ideia que aumente o nosso conhecimento há um ganho evidente. E porque Sócrates não tem interesse apenas enquanto figura política com as suas idiossincrasias, ele exerceu cargos de liderança partidária e de governação. Logo, exibir as suas eventuais fraquezas intelectuais, os seus eventuais erros políticos e até as suas eventuais falhas de carácter corresponderia, em simultâneo, a fazer um juízo sobre os grupos, entidades e terceiros que o acompanharam e lhe deram o acesso ao poder. É muita gente junta que está em causa; várias dimensões e processos fulcrais na política nacional, portanto.
Peguemos no exemplo acima citado, típico do seu modus faciendi. O parágrafo termina com o inevitável tiro ao boneco: Sócrates é tão mau que se deixou arrastar até às últimas sem ter feito o que deveria ser feito. Mas em que consistia isso que não foi feito? Pelos vistos, tratar-se-ia de conseguir arranjar um “mecanismo” que “afastasse Portugal do resgate”, o qual, pelos vistos, até chegou mesmo a existir, pelos vistos, mas que, pelos vistos, não chegou a ser utilizado, pelos vistos.
Estamos perante um raciocínio muito denso, prenhe de interrogações, e ainda nem sequer saímos da última frase. Calhando ter o autor à nossa frente, e tendo ele uns 5 ou 10 minutos para gastar connosco, poderíamos descascar esta cebola. Começaríamos e acabaríamos pela pergunta mais óbvia: “Ricardo, para ti existiu mesmo um mecanismo que nos teria livrado do resgate? É que se existiu tal bicho, como se depreende das tuas palavras caso tenhas escrito em português, a quem é que não dava jeito que Portugal escapasse ao resgate? Conta lá, tu que sabes tanta coisa e és tão inteligente.”
Não o tendo por perto, talvez o recurso às frases que antecedem a última pudesse chegar para esclarecer as dúvidas, mas é o contrário que acontece. Lá, começamos por encontrar implícito o pressuposto de ser a Europa a ter de assumir a resolução dos problemas das dívidas soberanas, pois cada Estado afectado por si mesmo não dispõe dos recursos necessários para lidar com um problema sistémico, o que é um facto basilar. E igualmente encontramos a imagem de Sócrates à espera dessa mirífica união europeia. Logo a seguir, em modo non sequitur, o texto confere a Sócrates a capacidade para, por si próprio, sacar do tal mecanismo da cartola e resolver o problema na hora. Na ausência deste salto contraditório, está bem de ver, lá ficaria o Ricardo sem a sua chucha.
Então, parece que Sócrates andou a gastar de mais e não olhou à dívida quando poderia ter resolvido os problemas, é esta a famigerada cantilena que tem sido martelada pela direita sem descanso nos últimos 6 anos e que continuará pelos próximos 10, no mínimo. O que nunca encontrámos, em nenhum dos papagaios que repetem o estribilho, é a demonstração da sua honestidade intelectual. Quando e onde é que o Governo socialista devia ter gastado menos? Devia ter gastado menos em 2009, ao arrepio do que foi a resposta Europeia à crise de 2008? Mesmo admitindo que sim para efeitos de exercício, esses cortes a serem feitos obedeceriam a que critérios e seriam em que volume? Recordemos que Ferreira Leite, profeta da desgraça que nos avisou para as catástrofes que aí vinham a caminho por causa do inerente aumento da dívida no contexto do “abalozinho”, nunca colocou as suas consequências para o futuro próximo ou sequer de médio prazo. Os malefícios iriam atingir as gerações futuras, dizia ela. Dizia ela o que podia dizer, coitada da santa senhora, e ela não podia falar do que nem sequer imaginava que iria acontecer poucos meses depois das eleições de 2009: a hecatombe grega em 2010 que inicia o ciclo apenas europeu da crise mundial.
Ou será que o Ricardo está a dizer que após o início da crise das dívidas soberanas Sócrates continuou a gastar à tripa-forra? Foi isso que viu por entre todas as medidas de austeridade que foram tomadas por imposição europeia ao longo de 2010 e no princípio de 2011? Ou será que o mano Costa carimba como anos em que se gastou “de mais” aqueles que antecedem a crise mundial e os quais correspondem ao melhor período da economia nacional em muito e muito tempo, tendo-se registado uma redução do défice para menos de 3%? De que estará a falar? Talvez dos aeroportos e das linhas do TGV. Ou talvez do investimento em ciência e tecnologia, em educação e saúde, em energias renováveis e exportações, em apoios sociais a distribuir num país pobre apanhado em crises gigantescas.
À direita não interessa qualquer balanço objectivo do que foi a governação do PS até às crises nem do que foram os constrangimentos à governação adentro das crises. Não interessa porque os partidos da direita, com as actuais lideranças oportunistas e decadentes, apenas pretendem defender agendas próprias e usufruir do poder. Curiosamente, à esquerda o desinteresse é igual, não se encontrando no PCP e no BE qualquer defesa do que se fez em Portugal de 2005 a 2008. Este é o quadro cínico onde a política está reduzida ao sectarismo, assim gerando uma infindável guerra civil. Para quebrar esse ciclo infernal, teremos de encontrar um jornalismo cuja referência não seja o ego inflamado e à solta dos directores em bicos dos pés. E para encontrar esse jornalismo, os cidadãos têm de exigi-lo sob pena de nunca aparecer.

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