quinta-feira, 20 de março de 2014

Leituras






O presidente de todos os pulhas


Cavaco falou aos portugueses a propósito das eleições para o Parlamento Europeu. Disse-lhes para se portarem bem. Nada de “troca de acusações e ataques“. Nada de“crispação“. Porque essas porcarias podem estragar os “entendimentos” futuros.
Em 9 de Março de 2011, numa altura em que um Governo minoritário tinha conseguido o apoio da Europa para evitar um resgate de emergência, Cavaco aproveitou o primeiro acto do seu novo mandato para abrir uma crise política marcada por um nível de crispação inaudito e velhaco. O propósito era só um: provocar uma insanável conflitualidade entre Governo e oposição que levasse ao fracasso do plano para evitar o resgate e, consequentemente, que obrigasse o País a ir para eleições nas piores condições possíveis para o PS. Num discurso que apagou o contexto internacional da crise, e que na sua fúria golpista até se esqueceu de fazer qualquer referência às Forças Armadas apesar de se tratar de uma ocasião solene onde tal seria obrigatório, Cavaco assumiu o papel do incendiário que só descansa quando vir Lisboa a arder. A sua deliberada inacção nas semanas seguintes, nada fazendo para promover “entendimentos”, fica como uma exuberante manifestação do que é a cultura política da oligarquia, não hesitando em afundar o País para alcançar o poder.
Durante a campanha para as eleições presidenciais de 2011, um dos argumentos que Cavaco utilizou para justificar o voto na sua pessoa foi o da experiência política, que comparava com a inexperiência de Alegre. Dada a situação de extrema complexidade e gravidade em que Portugal se encontrava – prova de que homem não estava louco, era apenas um sonso gigante – se os portugueses deixassem que Alegre meramente chegasse à segunda volta os mercados de imediato nos penalizariam pela estultícia, e esse castigo assumiria a forma da subida dos juros no financiamento externo. Caso Alegre ganhasse as eleições, ficava implícito, as 7 pragas do Egipto seriam como uma brisa primaveril face ao que os mercados nos iriam fazer.
Cavaco, enquanto Presidente da República Portuguesa, é um pulha. Um tipo que para vencer umas eleições faz chantagem sobre o eleitorado, é um pulha. Um tipo que após ganhar essas mesmas eleições tudo faz para que o seu país seja obrigado a aceitar as piores condições de financiamento custasse o que nos custasse, incluindo a diminuição drástica da soberania, é um pulha. Um tipo que trata a sociedade como carne para canhão dos seus ódios e ambições, é um pulha. Resta só descobrir a razão pela qual este país aceita ser representado no mais alto cargo do Estado por um pulha.


A humildade é a melhor aliada da inteligência

Continuamos a precisar de inteligências como a de Medeiros Ferreira. A sua obra persistirá como uma bússola para podermos compreender os nossos caminhos do futuro.
Há homens que são eles, o seu talento e a sua circunstância. Medeiros Ferreira fazia parte dessa categoria de seres humanos. Homem do seu tempo, pelo vigor da sua inteligência e pela vastidão da sua cultura, conseguia projectar-se para além do imediato e alcançava uma intelecção dos acontecimentos verdadeiramente fora do comum. Para isso contribuíam, com certeza, a sua erudição histórica e a sua formação filosófica. Por motivos geracionais, não convivi intensamente com ele.
Conheci-o nos Açores, numa iniciativa dos famigerados “Estados Gerais”, em 1994; fui seu contemporâneo durante alguns anos na Assembleia da República; falámos pela última vez ao telefone há um mês atrás. E, contudo, este homem, apesar dessa distância, marcou-me profundamente.
Há duas semanas atrás, esperava-o numa livraria do Porto. Eurico Figueiredo, seu companheiro dos tempos de Genebra, tinha-me convidado para participar numa cerimónia de apresentação do seu último livro. Estavam lá também, em idêntica condição, Artur Santos Silva e Manuel Carvalho. Medeiros Ferreira não pôde comparecer. Tinha sido de novo internado nessa tarde. Eurico Figueiredo, com o seu saber de médico, anunciou o que já nenhum de nós desconhecia. Subitamente, aquele momento adquiriu um carácter pré-fúnebre. Se é muito difícil evocarmos a memória de alguém que morreu, é especialmente dramático fazê-lo sobre alguém que vai morrer. Sobretudo quando esse alguém transporta consigo um conhecimento, uma desenvoltura intelectual, um rigor analítico de tal ordem excepcionais que percebemos de antemão que dificilmente poderão ser preenchidos. Artur Santos Silva e Manuel Carvalho pronunciaram então discursos diferentes, mas de uma clarividência rara sobre o presente e o futuro do nosso país. Eurico Figueiredo, com a propensão heterodoxa que o caracteriza, referiu-se com palavras certeiras à personalidade do autor da obra então apresentada. Nessa ocasião, perante uma reduzida assistência – rude manifestação dos tempos –, tive consciência de estar a viver um momento histórico. Um momento em que se misturavam a grandeza do homenageado e a tristeza própria da tomada de consciência do seu fim próximo.
Ontem estive no Palácio Galveias, nesse derradeiro momento público da vida de um grande homem. Loureiro dos Santos, Vasco Cordeiro, Mário Soares e Ramalho Eanes, em breves discursos, referiram-se à vida, à obra e ao pensamento de Medeiros Ferreira. A inteligência também pode comover. Ouvindo-os, passámos em revista o percurso desse açoriano, paradoxalmente nascido no Funchal, que marcou os nossos tempos e as nossas vidas. Ali estavam a exposição da memória de um homem que nunca foi simples, jamais cedeu ao impulso da vulgaridade e que nos deixa um legado de uma subtileza rara. Ao ouvi-los, não poderíamos deixar de estabelecer um paralelo com os tempos presentes. Por vezes, aos 49 anos, sinto a nostalgia de outras épocas. Será isso a primeira manifestação dessa estação etária, hoje tão amaldiçoada e outrora tão respeitada, as primícias da velhice? A verdade é que, olhando para o discurso preponderante na actualidade, temos tendência a sentirmo-nos póstumos em relação a nós próprios. Quando ouço ministros, secretários de Estado, editorialistas da moda a falarem da Europa, da crise e da questão da dívida, com o dogmatismo que a ignorância proporciona, lembro-me desses homens políticos, hoje tão raros, que conheciam a História. Valerá a pena aconselhar a leitura do último livro de Medeiros Ferreira a essa gente? Infelizmente, não tenho a certeza. Nesta época em que o lugar-comum, o soundbite esperto e a pequena astúcia prevalecem no pensamento rigoroso e profundo, parece destinado a uma condição menor. Não querendo cair no exagero de uma melancolia saudosista, porventura excessiva, não posso deixar de afirmar uma profunda admiração por esses homens e essas mulheres que, pela originalidade e pela força do pensamento, concorreram para a transformação da nossa vida política e cívica. No Palácio Galveias, senti-me transportado para o passado e, simultaneamente, invadido por uma espécie de memória do futuro. Será isso o saudosismo do grande Teixeira de Pascoaes? A saudade do futuro?

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