terça-feira, 11 de março de 2014

Leituras



Machado de Assis

O cabeça de lista do PS às eleições europeias de maio, Francisco Assis, mostrou-se hoje disponível para debater com Paulo Rangel (PSD/CDS-PP) "absolutamente tudo" do passado recente, mas reclamou uma discussão séria sobre o presente e futuro.
"Paulo Rangel parece ter uma obsessão com o passado recente. Se quiser, em local e hora a determinar, estou disponível para uma discussão de natureza mais histórica para discutir o passado. E a seguir concentremo-nos no fundamental: vamos discutir face a face o presente e o futuro da Europa e de Portugal", disse o cabeça de lista socialista em declarações aos jornalistas no parlamento.
Assis falava depois de o cabeça de lista do PSD e CDS-PP ao sufrágio europeu ter considerado esta manhã que existe uma contradição entre António José Seguro e Francisco Assis na defesa da herança dos governos socialistas liderados por José Sócrates.
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Assis pegou o boi pelos cornos. Na apresentação da sua candidatura ao Parlamento Europeu, atiçara os cães:
"Se houve partido despesista em Portugal não foi o PS, foi o PSD. Nem eu nem qualquer socialista temos qualquer receio de falar do passado. Mas o PSD tem receio de falar do presente."
Como Pavlov permanecerá eternamente actual, os cães reagiram de acordo com as leis fisiológicas vigentes. Rangel lançou-se fogoso de bocarra aberta para morder o osso. E foi apanhado na armadilha. De imediato, Assis desafiou Rangel para debaterem a tal amaldiçoada herança socrática. Fazendo fé no inventor da asfixia democrática, estamos face ao equivalente de ver Stephen Hawking a desafiar a selecção olímpica de halterofilismo da Rússia para uma sessão de pancadaria em modo um contra todos. Como é que se poderá defender a vergonha, o horror e a catástrofe, interrogam-se banzos aqueles cheios de cascas de laranja entre as orelhas. Pois é, mas, entretanto… acaso ouvimos Rangel dizer que sim, que está a salivar para a matança?… É que já deve ter tido tempo para entender o recado, 96 horas depois. E, se não entendeu, talvez conheça alguém a quem pedir ajuda. Não só o desafio para o duelo ficou sem resposta como o mais provável é não voltarmos a ter notícia da coisa. Se Rangel optar por continuar a martelar na tecla do ódio, bastará a Assis continuar a repetir que está a ser cobardemente atacado por um cobarde. Não creio que Rangel aguentasse a exposição.
Esta táctica de Assis não revela apenas um político inteligente, antecipando-se ao inevitável ataque de baixa política de que iria ser alvo e esvaziando a táctica adversária para a transformar num trunfo que poderá usar como bem entender e de onde sairá sempre a ganhar. Este episódio mostra também o que poderia ter sido a estratégia do PS desde 5 de Junho de 2011. Nisso Rangel tem absoluta razão, Seguro não mexe uma palha na defesa da governação socialista pré-Troika, chegando ao ponto de dar bastos, e pouco ou nada disfarçados, sinais de ser cúmplice da retórica da direita no ataque a Sócrates e ao seu próprio partido. Essa evidência torna ainda mais inteligente, ou tão-só pérfida, a declaração de Assis a respeito de não haver “qualquer socialista com receio de falar do passado“. É que o corolário desse pressuposto, como está abundantemente documentado, faz de Seguro algo que deixa de suportar o rótulo “socialista”.
Mas não é só a direita que não quer discutir a governação socialista de 2005 a 2011, sob pena de cair no ridículo com a cassete do TGV e do aeroporto. A esquerda igualmente não pretende ter qualquer discurso sobre esse passado glorioso em que fez o possível para entregar o poder ao casal Passos-Relvas. E, talvez ainda mais surpreendentemente, a comunicação social cristaliza o status quo e anula qualquer revisitação crítica desse período que possa pôr em causa as agendas dos patrões de imprensa, alinhadas todas elas com a direita. Onde é que estão os dossiers do Expresso e do DN, do Público e daVisão a fazerem o balanço desses anos e a elaborarem análises e comparações documentadas entre os factos e os discursos da oposição que pretendiam deturpar esses factos? Alguém se lembra de um Fórum TSF dedicado ao assunto? Há Prós e Contras a propósito de tudo e mais alguma coisa. Basta que a Fátima Campos Ferreira sinta uma corrente de ar em frente de uma janela aberta para ir a correr despachar mais um programa. Quantos é que já fez sobre os anos em que, garante a gente séria, um tipo muito corrupto e completamente louco conseguiu sozinho levar Portugal, Grécia, Irlanda e Chipre à bancarrota, já para não falar no estado em que deixou a Espanha, a Itália e a França? Não seria um Prós e Contras destinado a bater recordes de audiências? Quem é que se permitiria faltar ao linchamento público dos malvados socráticos? As famílias lusitanas iriam encher as suas casas de frango assado, batata frita palha e garrafas de Sagres de 1 litro para assistirem em frenesim a essa tourada, o empalamento dos gajos que conseguiram provocar uma bancarrota com o TGV que nunca construíram e que em grande parte já estava pago pela Europa.
Como se viu neste exemplar episódio – O Gomes Ferreira já foi servido, tragam agora o Medina Carreira e o Marques Mendes – quem for apenas munido com a sua pulhice para a frente de um “socrático” leva. A estratégia do ódio, que começou em 2008 com Cavaco Silva, Manuela Ferreira Leite e Pacheco Pereira, mais a exploração do Freeport na TVI dos Moniz, que passou pela Inventona de Belém e que culminou com as escutas à privacidade de um primeiro-ministro e consequente tentativa de golpe judicial, sustenta-se na rigorosa anulação da discussão objectiva sobre qualquer questão que sirva de arma de arremesso. Por isso a maior crise económica mundial dos últimos 80 anos não passava de um “abalozinho” nas palavras de uma famosa licenciada em Economia e famigerada ex-ministra das Finanças. Por isso foi possível a um Presidente da República de um país cuja moeda é o euro, no auge do caos europeu na resposta às crises da dívida soberana, em Março de 2011, ter feito um discurso de tomada de posse onde não diz uma única palavra acerca da Europa, nenhuma (leia-se: nem uma), só para poder concentrar todo o poder de fogo sobre o Governo que pretendia derrubar. Não admira, portanto, que sejam os mais estúpidos – à direita e à esquerda, estúpidos por canalhice, estúpidos por fanatismo e estúpidos por iliteracia, por falta de estudos ou por degradação cognitiva – aqueles que ficaram em êxtase com a diabolização de Sócrates feita na comunicação social numa escala e intensidade como nunca antes se tinha visto por cá. Sócrates era, e para muitos continua a ser, o bode expiatório mais do que perfeito para poderem descansar um bocadinho da impotência e miséria em que se arrastam.
Há um outro grupo de estúpidos, em 2º grau, que igualmente reage pavlovianamente quando se denuncia a alienação reinante. Vêm logo a correr atacar o mensageiro, dizendo que ele só está a falar para favorecer a vítima, e que a vítima não tem inocência alguma. O mensageiro, para este tipo de estúpidos, está a querer passar a ideia de que a vítima-culpada era pura quando estes estúpidos sabem que ela se portou muito mal. A estupidez destes estúpidos tem o mesmo objectivo dos estúpidos em 1º grau, impedir qualquer discussão que possa ser contaminada por argumentos com alguma objectividade e sujeitos à verificação factual. Por isso, assim que puxamos um bocadinho por estes estúpidos, rapidamente entram em parafuso e desatam a balbuciar inanidades.
Francisco Assis mostrou qual é o caminho para o PS recuperar a autoridade política e passar a ser ouvido. Passa por confrontar os que dependem das difamações e calúnias sistemáticas para terem um discurso; discurso esse que vem sendo consumido por alimárias e cuja irracionalidade consegue gerar uma apatia generalizada por estarmos numa sociedade avessa ao exercício intelectual, fragmentada por sectarismos enquistados e onde a cidadania é a excepção. O silêncio Seguro só serve os interesses oligárquicos dos que preferiram afundar Portugal e as pulsões vingativas daqueles que, tragicamente, os militantes socialistas escolheram para liderar a oposição no período em que o maior ataque à democracia nascida de Abril está em curso. Para todo este matagal de ervas daninhas e animais venenosos, a postura de Assis é o machado que abre o caminho para quem quiser fazer da política o espaço onde a decência, a inteligência e a coragem são os pilares da comunidade.

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