sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Leituras



Bartoon | Público
FERNANDA CÂNCIO

Referendo condenado

por FERNANDA CÂNCIOHoje | Diário de Notícias
Na Áustria não há casamento para pessoas do mesmo sexo. Só em 2010 foram reconhecidas as uniões de facto homossexuais. Mas a possibilidade de coadoção, já existente para casais hetero, foi em outubro estendida aos casais homo - tornando o país o 13.º da Europa a permiti-la. Porquê? É simples: fora em fevereiro condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) por negar a um casal de mulheres em união de facto a possibilidade de uma adotar o filho biológico da outra.
Considerando que a Áustria, cujos tribunais recusaram o pedido do casal para iniciar um processo de coadoção, estava a violar os artigos 14.º e 8.º (proibição da discriminação e direito ao respeito pela vida privada e familiar) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o TEDH concluiu que o respetivo Governo "não tinha conseguido demonstrar de forma convincente que excluir a coadoção num casal do mesmo sexo, embora permitindo-a num casal de sexo diferente em união de facto, era necessário para a proteção da família, entendida no sentido tradicional da proteção do interesse da criança. A distinção [entre os dois tipos de casal] é portanto incompatível com a Convenção."
As decisões do TEDH não obrigam os Estados a mudar a lei, mas é costume acontecer: afinal, são signatários da Convenção e reconhecem a soberania do tribunal. Assim, a Áustria fê-lo. O mesmo não fizeram, porém, os outros quatro países mencionados no acórdão como comungando da mesma violação (permitir a coadoção em casais hetero em união de facto e não a casais homo): Rússia, Ucrânia, Roménia e Portugal. Apesar de o TEDH enfatizar que é o princípio e não o caso concreto que está em causa: "A presente decisão não tem a ver com a ideia de que o pedido de coadoção dos queixosos deveria ter sido atendido; tem a ver com a discriminação de que foram alvo por os tribunais não terem tido oportunidade de examinar realmente se a coadoção requerida era do interesse da criança, já que foi declarada legalmente impossível."
Não é a primeira decisão de tribunais europeus a tornar claro que, como o TEDH disse em 2002 a propósito destes temas, "os Estados não têm carta-branca para exercer poder arbitrário". Uma advertência que deve ser dificilmente compreensível a uma maioria que se especializou na arbitrariedade, no desrespeito pela Constituição e no insulto ao Tribunal Constitucional, e que só ajoelha perante as decisões europeias que mandem reduzir défice e aumentar austeridade. Mas não nos equivoquemos: o primeiro-ministro que em 2010 dizia achar que a proibição de adoção para casais homossexuais é inconstitucional pode estar-se nas tintas para os princípios, não ter uma pinga de vergonha e achar incompreensível a noção de direitos fundamentais e decisões neles baseadas, mas não quer um referendo. Só quer empatar e poder dizer aos integristas conservadores cujo apoio deseja que fez tudo o que estava ao seu alcance. E, brinde, passar a batata quente a Cavaco.




O palhaço e o urso


As diferenças entre o que os políticos prometem em campanha eleitoral e o que fazem no poder é uma fonte de frustração, derrelicção, anedotas e vernáculo desde que há políticos e campanhas eleitorais, por cá ou no cu do mundo. Felizmente, a subida de Seguro ao leme do PS vai acabar com essa milenar desgraça pela força do seu imaculado exemplo. Quem conseguir esperar, vai ver. Entretanto, temos um Governo cujos responsáveis levaram esse desencontro entre promessas e realizações para um nível desconhecido na memória dos vivos. Aqueles que andaram anos ora a queixarem-se do investimento público e das actualizações salariais, ora a pedirem o fim da austeridade e dos sacrifícios, acabaram por afundar o País em nome da protecção aos rendimentos dos cidadãos só para esmagarem esses mesmos cidadãos com o maior aumento de impostos de sempre em Portugal e a degradação dos serviços públicos assim que puderam. Para agravar a aleivosia, estes tratantes encheram a boca com a “verdade” e a “credibilidade”, difamando e caluniando sistematicamente os governantes que pretendiam derrubar. E para juntar a ofensa ao insulto, assim que tomaram posse começaram a tratar os portugueses como um grupo de estroinas e mandriões a merecer castigos implacáveis.
PSD e CDS não disseram ao eleitorado o que pretendiam fazer caso fossem para S. Bento pôr e dispor. E não disseram porque sabiam que não poderiam ganhar se revelassem as suas intenções. Simetricamente, o BE e o PCP também não disseram o que esta direita pretendia fazer com o Governo nas mãos. E não disseram porque sabiam que esse grito de alerta levaria a um voto útil no PS. Mas houve quem dissesse, preto no branco e laranja sobre azul, o que os pulhas se aprestavam para fazer. Disse-o com detalhe. Não me está agora a ocorrer o nome desse fulano, mas lá que o disse, disse. O que nos leva para Paulo Portas.
É impossível que alguém se surpreenda com a falta de palavra de Passos Coelho se tiver em conta quem foi (é?) o seu braço direito de décadas, o dr. Relvas. Esse estupendo exemplar do laranjal foi capaz de ir para um estabelecimento de ensino superior usar a sua própria filha para tentar agredir e humilhar os pais e os filhos de Sócrates mais a restante família, toda – e, que se saiba, nunca pediu desculpa. Aqui entre nós que ninguém nos lê: que partido, que Governo e que país é este que aceita elevar a um cargo ministeriável uma tal alimária? Pois, concordo. Mas falemos do Portas. Começando por passar os olhos por esta compilação que o David Crisóstomo teve a pachorra de coligir –O CDS segue para Bingo (II) – só para refrescar a memória indo à fonte e seguindo logo para a pergunta: donde vem a complacência com que a sociedade aceita que Portas nos ande a tourear desde 1997?
Portas tem várias características que explicam o seu longo sucesso à frente do CDS. A principal talvez seja o talento para a comunicação, sendo tão eficaz na televisão como ao vivo. Ele desperta uma natural simpatia que é congénere da estima que temos pelos actores bufões. Nós sabemos que ele sabe que nós sabemos que ele sabe que nada do que diz é para levar a sério. O seu partido não é para levar a sério, é no máximo para levar ao colo. O seu partido não ambiciona mais do que ser uma empresa, a empresa daqueles que no PSD não teriam lugar à mesa do poder. Nesse sentido, a política pode ter sido o palco onde Portas encontrou o espaço ideal para expressar a sua vocação teatral. De facto, como vemos todos os dias, a retórica, os códigos e a cultura dos políticos profissionais portugueses é algo que está cristalizado e nivelado por baixo, sendo fácil para uma inteligência ágil encontrar uma fórmula para se destacar. Foi assim que se inscreveu na história do Parlamento como um dos seus melhores tribunos, gostos e relevância à parte.
A discrepância entre o que o paladino dourado dos pensionistas e dos contribuintes dizia e o que faz neste Governo escapa à possibilidade de adjectivação sem se começar à caralhada. Porém, ele quem é o país isto que somos, é possível que ninguém se importe e se prefira que seja ele a continuar à frente do CDS até aos 90 anos. Porque é sempre preferível lidar com um palhaço do que com um urso.



 NOVA ESCRAVATURA CIVILIZADA (NEC): 
UM OUTRO CONCEITO DE LIBERDADE INDIVIDUAL 

{José Pacheco Pereira}


1. A Juventude Popular propôs numa moção ao Congresso do CDS a diminuição da escolaridade obrigatória do 12º ano para o 9º ano porque “a liberdade de aprender (…) é um direito fundamental de cada pessoa”. Cinco secretários de estado, que pertencem à distinta agremiação, subscreveram a moção, que exprime o direito inalienável à ignorância, como direito individual.(*) Isto escrito por membros de um partido que se diz “personalista”. Aliás há outras puras imbecilidades na moção, como seja a igualização do “autoritarismo do Estado Novo”, com “o autoritarismo do défice e da dívida”, uma “ideia” igualmente muito reveladora do que vai na cabeça dos candidatos a senhoritos do CDS, que, como se vê, nos governam. 

2. Num processo de habituação e impregnação pelo veneno dos “argumentos” do poder a que vimos assistindo nos últimos anos, já não se reage a nada, nem sequer a perigosas enormidades, em que o próprio facto de terem sido enunciadas no âmbito do actual poder político já é de si muito preocupante. Há mais extremismo aqui do que no mais obscuro grupo anarquista ou maoista. 

 3. Vamos pois “explorar” a “ideia” da Juventude Popular e dos seus (nossos) secretários de estado. Comecemos pela “ideia” de que a escolaridade obrigatória até ao 12º ano, um requisito mínimo no actual débil mercado de trabalho, "limita a liberdade". Não custa perceber pela justificação que a mesma é valida para a educação obrigatória em geral. Ou seja, cada um, famílias e pessoas, são livres de escolherem o grau de escolaridade que pretendem ter, como se isto fosse de facto livre. Eu percebo-os, se precisam de marceneiros, trolhas, carpinteiros e electricistas, que dispêndio é terem que ter o 12º ano? Bastava a quarta classe, enquanto Harvard fica para a elite da elite. Aliás, educação e exigência, algumas vezes vão a par e por isso convém perceber que a educação é sempre perigosa para a “ordem social”. 

 4. Muito bem, mas vamos aprofundar o "conceito". Deixando de haver educação obrigatória, também não tem sentido impedir o trabalho infantil. De facto, que sentido tem a liberdade de não ir à escola sem a liberdade de se poder ir trabalhar? Os pais encontram nessa possibilidade uma maneira de combater as crises, colocando as suas filhas a gaspeadeiras com 14 anos e os rapazes nas obras aos 12. Para além disso, que adolescente gosta da escola? Por que razão não há-de ter a liberdade de ir berrar para uma claque de futebol em vez de ir para as aulas, ou de viver à custa dos pais até aos trinta anos? 

5. Vamos ainda aprofundar mais. Na verdade, nós devemos ser senhores do nosso próprio corpo, apenas com a excepção das mulheres grávidas que queiram abortar, porque isso é um crime. Só assim a minha liberdade é plena, por que posso vendê-la, ou comprar a liberdade de alguém. Sendo assim, por que é não tenho a liberdade de me vender como escravo, digamos que por um período de dez ou vinte anos, para poder pagar uma dívida, salvar a casa da família, educar um filho? Quando digo escravo, é escravo mesmo, agora num novo conceito que agradará certamente ao pensamento dos blogues “liberais”, a que podemos chamar a Nova Escravatura Civilizada (NEC). 

 6. Na NEC há algumas coisas que não se podem fazer a um escravo, como por exemplo, matá-lo, ou mutilá-lo, mas tudo o resto é livre. É por isso que é “civilizada”. Também não se pode marcar com um ferro em brasa, mas pode-se implantar um chip como se faz aos cães. O escravo é propriedade e é defendido pelas regras intangíveis da propriedade. Se fugir está a roubar o seu dono, pelo que pode e deve ser devolvido ao seu legítimo proprietário. Este pode prendê-lo, se quiser, em cárcere privado ou numa nova empresa que forneça serviços de cadeia. Pode fazê-lo trabalhar 18 horas por dia, pode alojá-lo numa casota, pode mandá-lo desactivar uma bomba, dormir com, servir à mesa vestido de libré, ou fazer salamaleques às visitas. Se for literato pode servir de négre do livro de receitas de Madame ou do manual de empreendedorismo do patrão, escrever umas crónicas engraçadas de caça ou touros e cantar o fado se tiver talento. Pode servir de guarda-costas, mordomo ou trabalhador rural, depende das propriedades e virtualidades do senhor. Pode deixá-lo de herança ou oferecê-lo como prenda de casamento. Mas, acima de tudo, pode comprá-lo e vende-lo num mercado regulado, pagando IVA pela transacção. No fundo, no fundo, não há já muitos escravos destes? Não seria melhor para eles a segurança da NEC, a “civilização” de um estatuto baseado na liberdade de cada um se vender por necessidade e de cada um comprar o que pode? Só sociedades socialistas é que podem atentar contra estas liberdades. 

7. A minha sugestão à Juventude Popular é que não se acobarde, mas explore as muitas virtualidades do seu projecto. Seria interessante ver, num próximo Congresso do CDS, a bancada superior dos meninos a fazer de gentleman farmer (à portuguesa, claro), ou vestidos de lordes ingleses, e em baixo os seus escravos a distribuir comunicados de imprensa, com a caixa, a escova e graxa prontas para polir as botas de couro, e umas criaditas com a quarta classe, mas a quem as patroas deixam ler a Nova Gente da semana passada, a sussurrar inconfidências e prontas para lhes levar a muda de vestido. Isto sim é que era um Portugal a sério. Só é pena que os malvados do Tribunal Constitucional o impeçam. 

(*) O CDS veio posteriormente negar que os Secretários de Estado tivessem assinado a moção e que isso se devia à forma como os seus nomes apareciam no documento e que permitia essa confusão.

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