sábado, 18 de janeiro de 2014

Leituras

OS FACILITADORES

Miguel Sousa Tavares, OS FACILITADORES [hoje no Expresso]:
    ‘Não contribui muito para me sossegar a notícia da contratação de José Luís Arnaut pela Goldman Sachs — naquilo que suponho ser a primeira consequência prática da nova política do banco para Portugal, definida por António Esteves como assentando no "investimento em pessoas e talento". Desconhecendo eu qualquer talento ou experiência bancária de Arnaut, resta o seu talento — esse, sim, por todos reconhecido — no capítulo "pessoas". Tal como Miguel Relvas, outro notável talento em "pessoas", o novo "conselheiro" da Goldman Sachs, José Luís Arnaut, tem a capacidade de chegar às pessoas que interessam, utilizando um inestimável património, trabalhado com mestria anos a fio, e que no ramo se chama "lista de contactos" — dos que atendem o telefone. Trata-se de uma próspera actividade em qualquer lugar do mundo, mas sobretudo em países como Portugal, onde tudo pode ser vendido, concessionado, facilitado, negociado, e onde a intimidade com o poder é a chave dos grandes negócios. Estes profissionais são bem designados pela deliciosa expressão que um amigo de Relvas encontrou para caracterizar a sua actual actividade: "um facilitador de negócios". O "facilitador de negócios", às vezes também designado por outras expressões mais cruas ou menos elegantes, é alguém que tem a capacidade de fazer poupar tempo e desembrulhar dossiês complicados, encontrando sempre um vendedor para um comprador, um decisor para um interessado. José Luís Arnaut é, neste aspecto, um ás de trunfo para a Goldman Sachs: basta dizer que não houve privatização feita por este Governo em que ele não tenha estado presente, representado ou os "investidores" face ao Estado ou o Estado face aos "investidores" — o que diz muito sobre a sua capacidade de acrobacia negociai e ausência de estados de alma nocivos e deslocados. Não pensem que é fácil ou que qualquer um pode chegar a um tão elevado estatuto na distinta profissão de facilitador de negócios. Não é essencial ter estado na política, mas é indispensável dormir com a política, sem olhar a camas. Embora a filiação num grande escritório de advocacia de tráfico de influências seja importante como porta de entrada, há outras formas de lá chegar que não requerem sequer qualquer habilitação académica ou título profissional, como Relvas bem ilustra: uma agenda de contactos irrepreensível vale mais do que qualquer PhD ou o nome no papel timbrado de uma sociedade de advogados. É ainda necessário que essa agenda não se limite a conter o nome de políticos de um governo, pois que os governos vão mudando, enquanto que o essencial dos contactos deve permanecer na agenda: "jotinhas" do "arco da governação", líderes emergentes da oposição, alguns autarcas de concelhos atractivos, académicos e técnicos tantas vezes necessários para dar credibilidade às pretensões, professores de direito para venderem pareceres, jornalistas para colocarem notícias ou opiniões a troco de um pagamento adequado. E é necessário também evitar que se aposte tudo apenas num nome em cada momento, para não acontecer o que aconteceu a Relvas, quando o seu grande contacto brasileiro, José Dirceu, acabou em desgraça atrás das grades. É um trabalho de filigrana, que exige inteligência, tacto, cautela e capacidade de observação, muitos pequenos-almoços, muito salão, muita gravata Hermès. No fim de tudo isto, garantidos "os talentos e as pessoas" certas, a Goldman Sachs pode dizer, pela boca do seu partner António Esteves: "Portugal é um risco de que gostamos". Compreende-se o gosto, não se percebe é o risco.’



Bartoon | Público
FERNANDA CÂNCIO

Referendar o horror

por FERNANDA CÂNCIOOntem | Diário de Notícias

Percebo o horror com que alguns terão visto em maio a aprovação do projeto de lei sobre coadoção em casais do mesmo sexo. Terá sido um choque darem-se conta da existência, entre nós, de casais do mesmo sexo com crianças. É compreensível: são crianças iguais a todas as outras, não andam por aí com uma cruz na testa ou na lapela. Não há notícias de tumultos nas escolas que frequentam, nos prédios e nas ruas onde vivem com a família. Aliás, até há muito pouco tempo, não havia notícias: podia acreditar--se que estas crianças não existem.
Quem se habituou a pensar assim, quem gosta de pensar assim, prefere agarrar-se a essa ideia. É por esse motivo que de cada vez que se fala de coadoção em casais do mesmo sexo - a possibilidade de um dos cônjuges solicitar a um tribunal que lhe permita adotar o filho, biológico ou adotivo, do outro cônjuge, filho esse que vive com os dois, que é criado pelos dois e chama mãe ou pai aos dois (e que não pode ter mais nenhuma mãe ou pai reconhecido pela lei, porque se tiver a coadoção é interdita) - há quem fale de adoção por casais do mesmo sexo. Conduzir o debate para a possibilidade de adotar, em conjunto, uma criança disponível para tal e até aí sem laços com o casal permite dizer coisas como "as crianças devem ter direito a um pai e a uma mãe"; "a adoção não é um direito dos adultos, é um direito das crianças"; "não sabemos o efeito numa criança de ser criada por dois pais e duas mães, por isso é melhor não arriscar" - etc. Sobretudo, permite fingir que se está a pôr acima de tudo a preocupação com as crianças, quando a intenção é a contrária.
Negar a determinadas crianças o direito de gozar da proteção que lhes confere o reconhecimento legal de dois progenitores em vez de um: é isso que quer quem recusa a coadoção em casais de pessoas do mesmo sexo. Tem um tal horror aos homossexuais que não hesita em sacrificar o bem-estar muito concreto das crianças muito concretas que com eles vivem. Como bem sabe que isso é vergonhoso, finge estar a tentar impedir que "se entreguem crianças a homossexuais" e pede um referendo "para a sociedade decidir".
Entendamo-nos: as crianças em causa na lei da coadoção nunca vão ter "um pai e uma mãe". Têm duas mães ou dois pais e tê-los-ão sempre - quer a lei lhos reconheça ou não. Não está em causa decidir com quem essas crianças vivem, quem vai educá-las e amá-las e quem elas vão amar. Essa decisão não nos pertence. A nossa opção é entre aceitar e proteger essas famílias ou rejeitá--las e persegui-las. Entre dizer a essas crianças "a tua família é tão boa como as outras" ou "a tua família não presta". Referende-se então isso: "Tem tanto horror aos homossexuais que deseja que a sociedade portuguesa decida em referendo discriminar os filhos deles ou acha que a lei portuguesa deve deixar, o mais depressa possível, de fingir que essas crianças não existem e o Parlamento lhes deve garantir os direitos que lhes faltam?"


Sem comentários:

Enviar um comentário