sábado, 18 de janeiro de 2014

Ary dos Santos morreu há 30 anos





Poeta castrado não!

Serei tudo o que disserem 
por inveja ou negação: 
cabeçudo dromedário 
fogueira de exibição 
teorema corolário 
poema de mão em mão 
lãzudo publicitário 
malabarista cabrão. 
Serei tudo o que disserem: 
Poeta castrado não! 

Os que entendem como eu 
as linhas com que me escrevo 
reconhecem o que é meu 
em tudo quanto lhes devo: 
ternura como já disse 
sempre que faço um poema; 
saudade que se partisse 
me alagaria de pena; 
e também uma alegria 
uma coragem serena 
em renegar a poesia 
quando ela nos envenena. 

Os que entendem como eu 
a força que tem um verso 
reconhecem o que é seu 
quando lhes mostro o reverso: 

Da fome já não se fala 
- é tão vulgar que nos cansa - 
mas que dizer de uma bala 
num esqueleto de criança? 

Do frio não reza a história 
- a morte é branda e letal - 
mas que dizer da memória 
de uma bomba de napalm? 

E o resto que pode ser 
o poema dia a dia? 
- Um bisturi a crescer 
nas coxas de uma judia; 
um filho que vai nascer 
parido por asfixia?! 
- Ah não me venham dizer 
que é fonética a poesia! 

Serei tudo o que disserem 
por temor ou negação: 
Demagogo mau profeta 
falso médico ladrão 
prostituta proxeneta 
espoleta televisão. 
Serei tudo o que disserem: 
Poeta castrado não! 





Um homem na cidade

Agarro a madrugada 
como se fosse uma criança 
uma roseira entrelaçada 
uma videira de esperança 
tal qual o corpo da cidade 
que manhã cedo ensaia a dança 
de quem por força da vontade 
de trabalhar nunca se cansa. 

Vou pela rua 
desta lua 
que no meu Tejo acende o cio 
vou por Lisboa maré nua 
que se deságua no Rossio. 

Eu sou um homem na cidade 
que manhã cedo acorda e canta 
e por amar a liberdade 
com a cidade se levanta. 

Vou pela estrada 
deslumbrada 
da lua cheia de Lisboa 
até que a lua apaixonada 
cresça na vela da canoa. 

Sou a gaivota 
que derrota 
todo o mau tempo no mar alto 
eu sou o homem que transporta 
a maré povo em sobressalto. 

E quando agarro a madrugada 
colho a manhã como uma flor 
à beira mágoa desfolhada 
um malmequer azul na cor. 

O malmequer da liberdade 
que bem me quer como ninguém 
o malmequer desta cidade 
que me quer bem que me quer bem! 

Nas minhas mãos a madrugada 
abriu a flor de Abril também 
a flor sem medo perfumada 
com o aroma que o mar tem 
flor de Lisboa bem amada 
que mal me quis que me quer bem!












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