segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Leituras / Brasil

Ex-ministro brasileiro José Dirceu entrega-se para cumprir pena do "mensalão"
 

 

Alimentando a desumanidade

Condenados à prisão em regime semiaberto, José Genoino e José Dirceu enfrentam tratamento inadequado

Paulo Moreira Leite /  ISTOÉ

 
  A prisão de 11 condenados do mensalão foi acompanhada de momentos preocupantes. Procurando as raízes do que está acontecendo, é possível chegar a articulações conservadoras que se mobilizavam contra os direitos humanos e garantias individuais – quando a democratização do país sequer completara seu curso. Vamos contar a história pelo começo, porém.

Os prisioneiros foram conduzidos ao presídio da Papuda, em Brasília, sem documentos que formalizem seu direito ao regime semiaberto, como definiu o STF.

A medida já provocou protestos formais dos advogados.

Em condições normais, me diz um dos advogados dos réus, uma atitude desse tipo se resolveria com um habeas-corpus, capaz de levar a libertação imediata dos prisioneiros.

Mas é difícil pensar que vivemos tempos normais quando o presidente do Supremo afirma que “quando as instituições se degradam, o País se degrada”, não é mesmo?

Outro drama envolve a saúde de Genoíno. Ele sofre de cardiopatia grave. Recentemente ficou no limite entre a vida e a morte, da qual escapou, segundo médicos, por uma questão de minutos, a bordo de uma ambulância que o conduziu a um hospital. Com base na avaliação médica, Genoíno já entrou com pedido de aposentadoria na Câmara de Deputados.

Transportado de São Paulo para Brasília, o deputado enfrentou situações complicadas, descreve uma reportagem do UOL:

“Ainda no aeroporto de Congonhas (SP), minutos antes de entrar na aeronave, o ex-presidente do PT foi examinado por um médico da PF que emitiu um laudo informando que ele tinha plenas condições de fazer a viagem.

No entanto, antes de chegar a Belo Horizonte, onde embarcaram mais sete presos, entre eles o empresário Marcos Valério, Genoíno se sentiu mal devido à pressão alta. Quando a aeronave pousou em BH, às 15h17, uma ambulância ficou estacionada na pista e Genoíno foi medicado. Por essa razão, o voo decolou para Brasília com um pequeno atraso.

Procurado para comentar o ocorrido, Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do setorial jurídico do PT e um dos advogados que acompanhou Genoíno desde ontem, afirmou que o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Joaquim Barbosa, "assumiu o risco de conduzir José Genoíno a Brasília, mesmo em virtude do estado clínico que o acomete, o que comprova os excessos na condução do mandado de prisão".

Temos, então, dois absurdos acumulados.

Para levar Genoíno a Brasília, assegurando uma nova sessão de fotos e imagens para a TV, ele foi conduzido a uma viagem em situação de risco e teve de ser medicado.

Qual a necessidade?

Do ponto de vista do cumprimento correto das penas, nenhuma. A razão é política.

O grave é que o tratamento inadequado, estimula cenas agressivas de  cidadãos contra condenados, como aconteceu no momento em que eram conduzidos em São Paulo ou Belo Horizonte, repetindo situações que já haviam ocorrido nas eleições  de 2010 e 2012, atingindo até mesmo o ministro Ricardo Lewandovski.

Não vamos entrar no mérito das conclusões do julgamento. Nem no conteúdo das denuncias que levaram a produção de penas altíssimas. Já discuti isso várias vezes.

Mas eu acho óbvio que este comportamento agressivo recebe estímulos de cima.

Num recurso de marketing primário, as prisões foram realizadas no dia da proclamação da República.

Mesmo que os condenados fossem culpados de todos os crimes que lhes são atribuídos – hipótese com a qual estou em desacordo absoluto – eles têm direito a um tratamento respeitoso.

Não é difícil associar essa situação com o ambiente criado no STF pelo presidente/relator Joaquim Barbosa. Seu comportamento agressivo e truculento em relação a colegas é um fato amplamente conhecido.

O problema é que essas reações agressivas não envolvem, apenas, uma questão de comportamento e boas maneiras. Implicam, também, num gestual pouco civilizado, de alto grau de violência – ainda que simbólica – que intimida e até silencia seus interlocutores.

Na última sessão do STF, o ministro Teori Zavaski só precisou questionar uma proposição de Joaquim Barbosa para ser acusado de cometer uma “chicana”, expressão que, conforme  Houaiss, pode ser equivalente a “tramoia”, enquanto “chicaneiro” é definido como “trapaceiro.”

No mesmo dia, numa reação típica de quem sentia-se intimidada depois de expressar uma diferença em relação às opiniões de Barbosa, uma das ministras fez questão de esclarecer  que eram divergências ínfimas.

Sendo quem é – representante de um dos poderes da República – esse comportamento se transmite, naturalmente, a várias camadas da sociedade.

Outros fatores contribuem na mesma direção. Envolvidos diretamente na produção das denuncias que alimentaram o escândalo, a maioria dos meios de comunicação tornou-se parte interessada no caso.

A dificuldade é que oito anos depois das primeiras notícias, continua apresentando os fatos da ação penal 470 como se toda a verdade se encontrasse nas manchetes de 2005. A realidade é que de lá para cá surgiram fatos novos e descobertas consistentes, que podem colocar em dúvida a versão inicial.

Para um esquema que teria desviado R$ 73,8 milhões do Banco do Brasil, uma auditoria da própria instituição assegura que não houve desvio de dinheiro público.

Contra a visão de que o esquema se baseava em empréstimos fraudados, a Polícia Federal apurou que os empréstimos do Banco Rural para o PT envolviam recursos verdadeiros, que foram usados para pagar despesas do partido e, mais tarde, quitados.

Um levantamento simples nos gastos de publicidade mostra que os próprios meios de comunicação receberam grande parte das verbas que teriam sido desviadas. Grupos como Globo, Folha, Estado, Abril e quem mais você lembrar das empresas de comunicação do país  estão entre os principais destinatários. O departamento comercial dessas empresas jamais negou o recebimento destes recursos, especialmente volumosos.

Foi assim que, enquanto as  denúncias ficaram magras, as penas permaneceram fortes. Sua base deixou de ser a prova, mas a denúncia de caráter moral.

Nesta situação, para tentar entender e avaliar o que se passou no julgamento, a maioria dos brasileiros só pode interpretar a coreografia do tribunal.

Não faz ideia de que juristas de valor reconhecido têm críticas a seus resultados e questionam boa parte das condenações. Não compreende que existem argumentos sólidos, que permitem acreditar na inocência absoluta dos condenados em relação aos crimes pelos quais foram condenados.

A truculência ajuda a criar uma novilíngua, onde o direito é visto como privilégio e toda tentativa de resistir a decisões que podem ser classificadas como  abusivas e arbitrárias não passa de um esforço para garantir uma posição superior na vida social.

Argumentos sensatos, bem fundamentados, são desqualificados e descartados como se não envolvessem um direito fundamental da existência humana, a liberdade.

Essa visão ajuda a formar a convicção popular, assinalada por Hanna Arendt ao estudar a emergência de processos totalitários na Europa dos anos 20 e 30, de que “os atos de violência podiam ser perversos, mas eram sinal de esperteza.”

Falando sobre o universo mental daquele tempo, ela assinala que “o mal, em nosso tempo, tem uma atração mórbida.”

Não é um problema novo para os brasileiros, na verdade.

Em 1987, professor Antônio Flávio Pierucci (1945-2012) fez uma pesquisa antropológica nos bairros de classe média de São Paulo, que deixou ensinamentos úteis para o Brasil de 2013.

Num texto chamado As Bases da Nova Direita, o professor assinalava que esta parcela influente de cidadãos já olhava com desconfiança para os primeiros avanços da democratização.

O país sequer havia votado em eleições diretas para presidente, a violência da tortura e das execuções de presos políticos fazia parte da memória muito recente, mas era possível registrar sinais de inconformismo com a nova situação. O motivo era uma política de direitos humanos lançada em São Paulo pelo governador Franco Montoro, um dos patronos do PSDB, num esforço para enfrentar e controlar atos da violência policial contra a população pobre e contra presos comuns.

Pierucci apontava para desvios de comportamento típicos:  um gosto especial por autoridades capazes de tomar medidas violentas e abusivas; a dificuldade de compreender que os direitos à dignidade e o respeito a lei precisam valer para todos – inclusive para pessoas condenadas pela Justiça – sob o risco de, aí sim, ser razoável falar em “degradação das instituições.”

Pesquisando a visão de mundo dessas pessoas, Pierucci anota: “Querer vê-los tendo arrepios, é pronunciar as palavras direitos humanos. Diante de uma pergunta dessas, eles e elas se inflamam, se enfurecem,” escreve.

“É interessante e decepcionante que a associação primeira do sintagma direitos humanos seja com a ideia de ‘mordomia’ para os presos.‘’

Sempre citando palavras recolhidas junto a homens e mulheres daquela época, o professor relata que, na visão dessas pessoas, o país assistia a uma “inversão de valores.”

Elas dizem que, enquanto o bandido é “endeusado, embora seja assassino, seja estuprador, seja o diabo”, e precisa de um “banhozinho de sol, precisa de champanhe francês, precisa de mulher”, o “policial é massacrado. Se ele dá um tiro por acaso, ele é massacrado e o bandido não, é exaltado.

Já em 1987, o professor antecipava: “a nova direita prima por diagnosticar a crise do presente como uma crise primeiramente cultural, uma crise de valores e de maneiras. Crise moral.”

Afirma Pierucci, ainda: “No Brasil metropolitano, há um acúmulo de tensões de toda ordem extremamente propício à arregimentação de cruzadas moralistas.”


É curioso observar porém que, um quarto de século depois, assistimos a um lamentável nivelamento por baixo.

O país e todos os seus governos não apenas fracassaram no esforço necessário para enfrentar  abusos inaceitáveis contra a população pobre, resistindo a toda proposição capaz de democratizar o aparato policial em atividade.

Através da criminalização da atividade política a partir de uma visão moralista,  um dos traços fundamentais da ação penal 470, convive-se agora com abusos contra homens públicos, com biografia respeitável e um histórico de valor.

Mesmo que Dirceu e Genoíno fossem culpados de todos crimes que lhe são atribuídos – o que está longe de demonstrado para além de toda dúvida razoável, como define a tradição do Direito – não há motivo para justificar qualquer  falta de respeito.

Mas é isso o que acontece. Temos comentaristas pródigos na produção de frases marotas de lamento diante das oportunidades perdidas para humilhar, envergonhar e machucar – até fisicamente – os condenados. Mesmo regras, criadas pelo próprio STF, que limitam bastante o uso de algemas no momento da prisão, são criticadas, nem sempre com a sutileza que se poderia imaginar.

Os condenados não se “apresentaram” a polícia, dizem. Se “entregaram,” expressão que procura esconder toda tentativa de preservar a própria dignidade numa hora tão difícil para toda pessoa que tem a força do Estado contra si.



 

 Como bons “chicaneiros,” apenas “querem ganhar tempo” e “protelar”.

Sempre lembrando que se vive num país onde os direitos humanos são uma meta que nunca esteve ao alcance maioria da população, o que se assiste é uma regressão histórica. Num país que não avançou o suficiente, anda-se para trás.

O abuso e a falta de respeito não apontam para o progresso. Ajudam  estimular e saciar o ressentimento.

Explicando o sentido das execuções públicas nas sociedades europeias do século XVII e XVIII, quando pessoas eram torturadas em praça pública antes de perder a vida, a historiadora Lynn Hunt explica na obra A Invenção dos Direitos Humanos que aquele  espetáculo mórbido tinha objetivos políticos claros: “as dores do corpo não pertenciam inteiramente à pessoa condenada individual. Essas dores tinham propósitos mais elevados de redenção e reparação da comunidade.”

Falando do comportamento da população, observadores  mencionados por Hunt observam que havia no rosto da plateia uma “espécie de Alegria como se o espetáculo que tinham presenciado lhes proporcionasse Prazer em vez de Dor.”

Ela também cita o jornal Morning Post que critica a “indecência extremamente desumana” de uma “multidão impiedosa”, que gritava, ria e agredia aqueles  “poucos que manifestavam uma compaixão apropriada pelas desgraças de seus semelhantes.”

(Este texto foi parcialmente reescrito e modificado em relação a versão original).





"Sou preso político e estou muito doente"

Na Papuda, a saúde de José Genoino é a preocupação principal dos prisioneiros da ação penal 470


"Estamos presos em regime fechado, sendo que fui condenado ao semiaberto. Isso é uma grande e grave arbitrariedade, mais uma na farsa surreal que é todo esse processo, no qual fui condenado sem qualquer prova, sem um indício sequer. Sou preso politico e estou muito doente. Se morrer aqui, o povo livre deste pais que ajudamos a construir saberá apontar os meus algozes!" (José Genoíno, 16/11/2013)

Presos há 72 horas na Papuda, em Brasília, a grande preocupação entre os condenados da ação penal 470 envolve a saúde de José Genoíno.

Reunindo laudos assinados pelos médicos que atenderam Genoíno no Sírio Libanês, seus advogados já entregaram  ao STF um pedido para que ele possa cumprir pena em prisão domiciliar.



O argumento a favor de Genoíno é que ele teve alta hospitalar, mas nunca terá alta clínica e passará o resto de seus dias sob cuidados médicos permanentes.

Genoíno havia sido aconselhado pelos médicos a não viajar de avião em função da pressão da cabine sobre um coração fragilizado, onde os médicos substituíram a aorta ascendente por um tubo.

Mas acabou embarcando no jato da Polícia Federal, após um exame médico no aeroporto. Foi sua primeira viagem de avião desde que foi operado. Genoíno passou mal na escala em Belo Horizonte e apresentava palpitações e dores no peito durante a viagem, conforme relatou ao cardiologista Daniel França, chamado pela família para que fosse examinado, por volta de 1 da manhã, quando já se encontrava na Papuda.

No laudo feito após o exame do paciente, o doutor Daniel registra um diagnóstico de cinco pontos. Explica, entre outras coisas, que Genoíno enfrenta dificuldades “para o controle adequado da pressão arterial.”  Também observa que tem problemas de coagulação, motivo de grande preocupação entre familiares. Conforme o laudo médico, essa situação pode produzir “sangramentos,” em determinados casos, e “trombose,” em outros.

Outra questão envolve o regime semiaberto para aqueles prisioneiros que têm esse direito, como José Dirceu e Delúbio Soares, além do próprio Genoíno. Eles se encontram na Custódia Federal da Papuda. A custodia, como o próprio nome diz, destina-se a guardar presos cujo destino ainda não está definido. Já os presos com direito ao regime semiaberto são encaminhados para o Centro de Progressão da Pena, uma  das diversas áreas do presídio, que se assemelha a um albergue mais protegido e guardado.

A primeira explicação para essa situação é que os mandados de prisão foram expedidos sem que todas as formalidades tivessem sido cumpridas. Isso facilitou o esforço de fazer prisões num 15 de novembro, aniversário da Republica. Mas não ajudou a preparar toda a documentação necessária para definir o regime prisional de cada condenado. Os prisioneiros chegaram a Papuda sem uma carta de sentença, necessária para definir exatamente a situação de cada um. Já havia passado da meia noite quando foi possível acomodá-los nas celas disponíveis. 

“A volúpia de fazer as prisões de qualquer maneira prejudicou os condenados até na burocracia,” afirma o advogado Hélio Madalena, um dos defensores de José Dirceu.

Acredita-se que a partir desta segunda-feira será  possível que os presos sejam encaminhados para o lugar adequado mas isso não quer dizer que tão depressa poderão usufruir da principal vantagem do sistema semiaberto, que é sair do presídio para trabalhar. Isso porque o prisioneiro precisa demonstrar que vai pegar no batente, se possível com registro em carteira assinada e demais  formalidades. No caso de José Dirceu, que tem escritório, domicílio e família em São Paulo,  Brasília é hoje um local de descanso e conversas políticas – mas nada que possa ser chamado de trabalho.

Encarregado de administrar a execução das penas, o  juiz Ademar Silva Vasconcelos terá um trabalho menos relevante do que ocorre em outros casos. Utilizando uma prerrogativa reservada ao Supremo, mas raras vezes empregada, Joaquim Barbosa manteve sob seus cuidados as principais deliberações a respeito do futuro de cada prisioneiro da ação penal 470.

O juiz Ademar Silva ficará responsável por decisões de caráter administrativo e, mesmo assim, cada deliberação deverá ser avalizada pelo presidente do Supremo. As decisões mais importantes, no entanto, serão do próprio Joaquim Barbosa. Os pedidos de transferência, as solicitações de redução da pena e outras decisões que envolvem um julgamento de mérito de cada prisioneiro vão depender dele.







 

Com a prisão de Dirceu e Genoino, fecha-se um ciclo

O resultado final do julgamento foi o acirramento da radicalização e o primado da vingança sobre a justiça
     
por Luis Nassif / Carta Capital
 
A democracia se consolida nos grandes processos bem conduzidos de inclusão social e política.
Em determinados momentos da história, emergem novas forças políticas, inicialmente em estado bruto, ganhando espaço com a radicalização do discurso contra o status quo.
 
Em todos os tempos, as democracias passam por processos de estratificação nos quais os grupos que chegaram antes ao poder levantam um conjunto amplo de obstáculos – políticos, econômicos e legais – para impedir a ascensão dos que chegam depois.
 
Trava-se, então, uma luta feroz, na qual os grupos emergentes radicalizam o discurso, enfrentam as leis, as restrições e vão abrindo espaço na porrada.
 
É a entrada definitiva no jogo político que disciplina essas forças, enriquece a política e reduz os espaços de turbulência. Todos ganham. Rompe-se a inércia dos partidos tradicionais, amaina-se o radicalismo dos emergentes; abre-se mais espaço para a inclusão; permite-se uma rotatividade de poder que derruba a estratificação anterior.
 
Sem essas lideranças, as disputas políticas iniciais enveredam para o conflito permanente, deixando o legado de nações conflagradas, como na Colômbia e no México.
 
Daí a importância essencial dos líderes que unificam a ação, impedem a explosão das manadas e montam estratégias factíveis de tomada do poder dentro das regras do jogo.
 
Acabam enfrentando duas espécies de incompreensão. Dos adversários políticos, a desconfiança sobre suas reais intenções, manobrando o receio que toda sociedade tem em relação ao novo. Dos aliados, a crítica contra o que chamam de “acomodamento”, a troca do sonho por ações pragmáticas.
 
Em seu estudo sobre Mirabeau, Ortega y Gasset define bem o perfil do estadista e de outros personagens clássicos da política: o pusilânime e o intelectual. O estadista só tem compromisso com a mudança do Estado. É capaz de alianças com o diabo, desde que permita a suprema ambição de mudar um país, um povo. Já o intelectual se vale todos os argumentos do escrúpulo como álibi para a não ação.
 
Aliás, nada mais cômodo que o niilismo de um Chico de Oliveira, do bom mocismo de Eduardo Suplicy, dos homens que pairam acima dos conflitos, como Cristovam Buarque, dos apenas moralistas, como Pedro Simon. Para não se exporem, não propõem nada, não se comprometem com nada, a não ser com propostas genéricas de aprovação unânime que demonstrem seus bons sentimentos, sua boa índole, sua integridade intelectual – e que quase nunca resultam em mudanças essenciais.
 
As mudanças no PT
 
É por esse prisma que deve ser analisada a atuação não apenas de Lula, mas de José Dirceu e José Genoíno.
 
Ambos passaram pela luta armada. Com a redemocratização, ingressaram na luta política e das ideias. E ambos foram essenciais para a formação do novo partido e para a consolidação do mito Lula.
 
Na formação do PT, cada qual desempenhou função distinta.
 
José Genoíno sempre foi o intelectual refinado. Durante um bom período dos anos 90 tornou-se um dos mais influentes formadores de opinião do Congresso e do país, com suas análises sobre regimento da Câmara, sobre reforma política, sobre defesa.
 
Já José Dirceu era o “operador”, trabalhando pragmaticamente para unificar o PT em torno de um projeto de tomada do poder e, a partir daí, de reformas.
 
A estratégia política do PT passava por sua institucionalização, por um movimento em direção à centro-esquerda, ocupando o espaço da socialdemocracia aberto pelo PSDB – devido à guinada neoliberal conduzida por Fernando Henrique Cardoso e à ausência de lideranças sindicais.
 
Não foi um desafio fácil. O PT logrou juntar em torno de si uma multiplicidade de movimentos sociais, a parte mais legítima do partido mas, ao mesmo tempo, a parte menos talhada para a tomada de poder. Foram movimentos que surgiram à margem do jogo político, desenvolvendo-se nos desvãos da sociedade civil e sem nenhuma vontade de se sujar com a política tradicional.
Por outro lado, o papel unificador de Lula o impedia de entrar em divididas. Tinha que ser permanentemente o mediador.
 
O papel do operador Dirceu
 
Sobrava para Dirceu o papel pesado de mergulhar no barro. De um lado, com o enquadramento das diversas tendências – o que fez com mão de ferro -, dando ao PT uma homogeneidade que tirava o brilho inicial do partido, mas conferia eficiência no jogo político tradicional trazendo-o para o centro.
 
E o jogo político exigia muito mais do que enquadrar os grupos sociais do PT.
 
As barreiras eram enormes. Passava por montar formas de financiamento eleitoral, pela aproximação com o status quo econômico, pelos pactos com os grupos que atuam na superestrutura do poder, com os operadores dos grandes interesses de Estado, pelo mercado, pelo estamento militar, pela mídia.
 
Dirceu foi essencial para essa transição, tanto para dentro como para fora.
Um retrato honesto dele, mostrará a liderança inconteste sobre largas faixas do PT, o único a se ombrear com Lula em influência interna e com uma visão do todo que o coloca a léguas de distância de outros pensadores do partido.
 
Mas também era dono de um voluntarismo até imprudente.
 
Lembro-me de uma conversa com ele em 1994 em Brasília, com Lula liderando as pesquisas. Falava do projeto popular do PT e do projeto de Nação das Forças Armadas, sugerindo um pacto não muito democrático.
 
Não por outro motivo, em diversas oportunidades Lula confessou que, se tivesse sido eleito em 1994, teria quebrado a cara.
 
Com o tempo, o voluntarismo foi sendo institucionalizado. Internamente, no governo, Dirceu exercia uma pressão similar à de Sérgio Motta sobre FHC. Queria avançar mais, queria menos cautela na política econômica, queria um projeto de industrialização.
 
Sua grande obra de arte política, nos subterrâneos do poder, no entanto, foi ter mapeado os elos da superestrutura que garantia FHC e inserido o PT no jogo.
 
Esse mapeamento resultou na viagem aos Estados Unidos, desarmando as desconfianças do Departamento de Estado, dos empresários e da mídia; a ocupação de cargos-chave no Estado, que facilitaram negociações políticas com grupos de influência. Nada que não fosse empregado pelos partidos que já haviam chegado ao poder e que precisaram garantir a governabilidade em um presidencialismo torto como o nosso.
 
O veneno do excesso de poder
 
Assim como Sérgio Motta, no entanto, as demonstrações de excesso de poder tornaram-no alvo preferencial da mídia.
 
Trata-se de uma regra midiática clássica, que não foi seguida por ambos. Quando a mídia sente alguém com superpoderes, torna-se um desafio derrubá-lo. Com exceção de ACM e José Serra – a quem os grupos de mídia deviam favores essenciais e, em alguns casos, a própria sobrevivência -, todos os políticos que exibiram musculatura excessiva – de Fernando Collor ao próprio FHC (no período de deslumbramento), de Sérgio Motta a José Dirceu - terminaram fuzilados.
 
No auge do poder de Dirceu, creio que foi o Elio Gaspari quem o alertou para o excesso de exibição de influência. Foi em vão.
 
O reinado terminou em um episódio banal, a história dos R$ 3 mil de propina a um funcionário dos Correios. Tratava-se de uma armação de Carlinhos Cachoeira com a revista Veja, visando desalojar o grupo de Roberto Jefferson para reabilitar os aliados de Cachoeira (http://bit.ly/19sMvtX).
 
O que era claramente uma operação criminosa midiática, de repente transformou-se em um caso político, por mero problema de comunicação. Roberto Jefferson julgou que a denúncia tinha partido do “superpoderoso” Dirceu, para amainar sua fome por cargos. E deu início ao episódio conhecido por “mensalão”.
 
E aí Dirceu – e o próprio Genoíno – sentiram o que significa ter chegado tardiamente ao jogo político, não dispor de “berço” e de blindagem contra as armadilhas institucionais do Judiciário e da mídia.
 
A cara feia da elite
 
É uma armadilha fatal. Para chegar ao poder, tem que se chegar de acordo com as regras definidas por quem já é poder. Mas, sem ter sido poder, não se tem a mesma blindagem dos poderosos “de berço”.
 
O episódio do “mensalão” acabou explodindo, revelando – em toda sua extensão – a hipocrisia política e jurídica brasileira, o uso seletivo das denúncias, o falso moralismo do STF (Supremo Tribunal Federal).
 
Nos anos 40, Nelson Rockefeller tinha um diagnóstico preciso sobre o subdesenvolvimento brasileiro: havia a necessidade de um choque de modernidade, de criação de uma classe média urbana que superasse o atraso ancestral das elites brasileiras, dominada pelo pensamento de velhos coronéis.
 
Uma coisa é a leitura fria dos livros de história, as análises de terceiros sobre a República Velha, sobre o jogo político dos anos 30, 40, 50. Outra, é a exposição dos vícios brasileiros em plena era da informação.
 
Para a historiografia brasileira, o “mensalão” é um episódio definitivo, para entender a natureza de certa elite brasileira, a maneira como o conservadorismo vai se impondo, amalgamando candidatos a reformadores de poucas décadas atrás, transformando-os em cópias do senador McCarthy. E não apenas no discurso antissocial e na exploração primária ao anticomunismo mais tosco, mas na insensibilidade geral, de chutar adversários caídos, de executar adversários moribundos no campo de batalha, de abrir mão de qualquer gesto de grandeza.
 
Expõe, também, de maneira definitiva as misérias do STF.
 
Aliás, Lula e o PT foram punidos pela absoluta desconsideração pelo maior órgão jurídico brasileiro. Só o desprezo pelo STF pode explicar a nomeação de magistrados do nível de Ayres Britto, Luiz Fux, Joaquim Barbosa e Dias Tofolli, somando-se aos inacreditáveis Gilmar Mendes e Marco Aurélio de Mello, à fragilidade de Rosa Weber e Carmen Lucia e ao oportunismo de Celso de Mello.
 
O resultado final do julgamento foi o acirramento da radicalização, o primado da vingança sobre a justiça, a exposição do deslumbramento oportunista de Ministros sem respeito pelo cargo.
 
No plano político, sedimentam no PT a mística de Genoino e Dirceu.
 
Se deixam ou não o jogo político, não se sabe. Mas, com sua prisão, fecha-se um ciclo que levou um partido de base ao poder, institucionalizou um novo jogo político e, sem o radicalismo dos sonhadores sem compromissos, permitiu mudar a face social do país.
Não logrou criar um projeto de Nação, como pensava Dirceu. Mas deixou sua contribuição para a luta civilizatória nacional.
 
A democracia brasileira deve muito a ambos.

 
 

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