Leituras
Um triste 5 de Outubro
por Mário Soares / Diário de Notícias
1 Deixou, com o atual Governo, de ser feriado. Pudera, este Governo não é
republicano, pois exclui os valores republicanos tanto quanto pode e não dialoga
com o povo. Ora, sem o povo não há República e muito menos quando se celebra o
aniversário de janela fechada para não se ouvirem as vaias. Mas ouviram-se. E de
que maneira. Porque a polícia, que também é povo, infelizmente é treinada para
espancar quem os chefes mandam e, assim, grita e bate em quem protestar. De
qualquer modo, as vaias dirigidas ao Presidente da República e ao
primeiro-ministro ouviram-se bem mesmo com a janela fechada na sala do
município. E os espancamentos policiais - e a prisão de um inocente que foi
libertado a seguir - multiplicaram o barulho e ouviu--se bem. Todo o País soube
o que se passou. Seria melhor a janela não estar fechada... Mas a verdade é que
nem se dignou a ver e a inaugurar a exposição sobre Raul Rego.
O discurso do Presidente da República foi curto e com pouco sentido e
interesse. Parecia ser republicano e de esquerda. O que nunca foi. Falou de
ética, em abstrato, da escola pública (que está a ser destruída), mas teve logo
o cuidado de dizer - a propósito do que se passa com o ministro dos Negócios
Estrangeiros (para o qual o líder do PS, e bem, pediu a demissão) - que um
ministro não depende do Presidente. E o primeiro-ministro que o Presidente
protege e escolheu não pode demitir o ministro por pressão do Presidente? Ou não
quer, apesar de ser, como se sabe, solidário, protetor fiel do
primeiro--ministro e do ministro dos Negócios Estrangeiros no tempo em que ambos
estiveram ligados ao BPN? Que sentido faz então falar de ética? Não se coibiu de
elogiar a senhora procuradora-geral da República, que não teve papas na língua
ao responder a propósito de Angola ao ministro dos Negócios Estrangeiros,
deixando-o muito mal.
Ao contrário, o discurso do presidente da Câmara de Lisboa, António Costa,
foi excelente, de bom senso e de oportunidade. Vale a pena relê-lo. Este
aniversário do 5 de Outubro lembrou-me os ominosos tempos de Salazar, em que por
dar vivas à República fui duas vezes preso, uma das quais quando, junto ao
monumento a António José de Almeida, grande presidente da I República, a PIDE
lançou gás lacrimogéneo sobre o general Delgado, os professores Jaime Cortesão,
António Sérgio, Mário de Azevedo Gomes e, modestamente, eu próprio.
Agora ainda não houve gás lacrimogéneo. É verdade. Mas a hipocrisia do
Presidente da República e do Governo de que o Presidente é solidário e protetor,
como se tem visto, é seguramente maior. Não há PIDE, é verdade. Mas a polícia
vai teimando em bater em quem protesta e qualquer dia - como avisou Durão
Barroso - "temos o caldo entornado"...
Em conclusão. Enquanto o Governo está completamente paralisado e ninguém sabe
o que se vai passar nos próximos dias, que Orçamento vamos apresentar
(silêncio!), como vai reagir o Tribunal Constitucional - esperemos que bem - e,
em concreto, quais as exigências da troika e dos usurários que a comandam?
Passos Coelho tenta segurar Rui Machete, como fez com Relvas, agora
desaparecido e vaiado também por portugueses no Brasil. Mas parece impossível
que consiga fazer o mesmo com o ministro dos Negócios Estrangeiros e com a
ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, igualmente acusada de pouca
seriedade e com pedidos do Parlamento para ser também demitida. É caso para
perguntar: que Governo é este que atrai tantos delinquentes e que Pacheco
Pereira, que é membro do PSD, teve a coragem de afirmar que "está cheio de
má-fé"? E cujas "secções, em muitos casos artificiais, controladas por caciques
locais, cuja vida, carreira e progressão dependem da sua capacidade de controlo
do poder interno".
Trata-se de um mau Governo, completamente parado e desprestigiado em Portugal
e no estrangeiro e de "má-fé". Contudo, o Presidente da República fala de ética
e - para não cair no ridículo absoluto - tem de o demitir. Até porque nenhum
português tomará o Presidente a sério, nem a sua ética, se o não fizer.
2 As eleições e os partidos
As eleições autárquicas do dia 29 do mês passado demonstraram que os
partidos, todos, estão anquilosados e devem ser repensados. Porque houve
abstenção como nunca, muitos votos em branco ou inutilizados e bastantes ditos
independentes, mesmo que realmente não o fossem...
A campanha neoliberal contra os partidos e os políticos e o apagamento dos
dois partidos que construíram a Europa - os socialistas ou sociais-democratas e
os democratas-cristãos, especialmente estes últimos - abriram a porta aos
mercados usurários e aos economicistas e autocratas, que só lhes interessa o
dinheiro e ignoram ostensivamente as pessoas, que para eles não contam. É o caso
do atual Governo. Daí as vaias que a classe média (que está a desaparecer) e os
trabalhadores, desempregados ou não, que passam fome, bem como os filhos, sempre
fazem ao Presidente da República e aos mais visados membros do Governo...
A arraia-miúda odeia o Governo porque sofre diretamente com os cortes das
pensões e os impostos, diretos ou indiretos, que lhes impõem com a chamada
austeridade, que continua. Mas em muitos casos, por ignorância, não distinguem
os bons dos maus políticos e, por isso, detestam todos a política, em geral.
Ignorando os economicistas e os burocratas ao serviço da austeridade, que são os
verdadeiros responsáveis pelo estado a que chegou o nosso pobre país e pela
destruição progressiva das instituições criadas no pós-25 de Abril: o Estado
social, o Estado de direito, a Constituição, que todos aliás juraram e deviam
respeitar (o que não tem sido o caso do atual Governo), os sindicatos e a
concertação social, bem como os cortes no ensino e nas nossas excelentes
universidades e hospitais (ao serviço de todos) que vão pouco a pouco sendo
destruídos.
Voltando aos partidos e à política. É necessário e urgente modernizar e
refazer os primeiros, com o objetivo de vencer a crise e acabar com a
austeridade e prestigiar a política, dignificando-a. De modo que os não sérios -
como sucede com alguns membros do Governo - sejam ignorados sistematicamente
pela Justiça que, infelizmente, temos. Os exemplos abundam, desde logo os
ligados ao BPN.
No artigo de sábado passado no Expresso, Miguel Sousa Tavares, um excelente
jornalista que diz a verdade e não tem medo, escreveu: "Nunca como hoje Portugal
precisou tanto de ter estadistas e verdadeiros políticos no lugar dos caciques
partidários, que tomaram o poder no PSD e no PS." Direi, com algumas exceções
que não devemos ignorar, porque há bons elementos nos dois partidos, como é
conhecido.
Por isso é natural que os portugueses, que estão desesperados, odeiem, com
razão, o atual Governo, porque lhes rouba as pensões para as quais descontaram
durante longos anos. Mas não devem nem podem generalizar essa raiva a todos os
políticos, mesmo que sejam dos partidos da oposição ou dos partidos que estão no
poder, onde existem ministros e secretários-gerais críticos e honestos, como os
há.
A verdade é que, como diz Sousa Tavares, cito: "Nunca como hoje Portugal
precisou tanto de ter estadistas e verdadeiros políticos no lugar dos caciques
partidários, que tomaram o poder no PSD e no PS", e eu acrescento: e também no
CDS/PP, apesar de como partido contar cada vez menos...
É por isso que todos os partidos, incluindo o PCP - que não mudou nada no seu
sectarismo desde que foi legalizado, e bem, no pós-25 de Abril -, sim, todos os
partidos sem exceção devem perceber que o mundo está em rápida mudança e os
partidos devem abrir-se e modernizar-se se quiserem subsistir no futuro próximo.
Os caciques, que só pensam subir na vida à custa do partido, sem valores nem
pensamento próprio, têm de ser substituídos por políticos que pensem pela sua
cabeça e tenham princípios éticos e ideológicos. É por isso que são membros de
um partido e não de outro...
É nesta base que digo que os partidos devem modernizar-se para que os seus
membros - a qualquer nível - tenham o sentido da sua ideologia
desinteressadamente. De modo a que o povo respeite os políticos sérios e conheça
a importância da Política, com P grande.
3 A Itália de Berlusconi acabou
Berlusconi parece ter terminado o longo período em que dominou - para mal dos
italianos - a Itália contemporânea. Graças ao seu dinheiro e ao domínio de uma
boa parte da comunicação social.
Berlusconi, que cometeu faltas sobre faltas e que a Justiça italiana não teve
a coragem de condenar, por múltiplas razões, acaba de perder o seu lugar no
Senado graças à intransigência do Presidente de Itália, Giorgio Napolitano, um
excecional Presidente, e ao primeiro--ministro, Enrico Letta, que está a fazer o
melhor que pode para salvar a Itália sem tocar na democracia e no Estado
social.
Foram os ministros do Partido Povo da Liberdade de Berlusconi que fizeram
cair Il Cavalieri, o que nunca tinha acontecido. Foi uma rebelião que julgo ter
tirado o futuro político a Berlusconi. Que aliás se refugiou na sua bela casa,
onde levou tantos políticos e onde tantas orgias ocorreram...
Enrico Letta parece ser o homem forte do momento e, curiosamente, é sobrinho
de Gianni Letta, que foi secretário de Estado de Berlusconi.
Enrico Letta é hoje popular em Itália porque tem estado a salvá-la da crise,
visto que um em cada dois italianos o considera ultrassério, eficaz,
tecnocrata-europeísta e muito competente no plano internacional. Conhece bem o
Parlamento Europeu e a Comissão de Bruxelas.
Em suma, é a antítese de Berlusconi. É da escola de Romano Prodi, como ele
católico e da antiga democracia-cristã, que tem vindo a perder em toda a
Europa.
Quanto a Il Cavalieri, ao que parece a sua hora passou. E já é uma sorte se
não for parar à cadeia, como a Justiça, no passado tão insegura, agora parece
querer.
Felizmente, entre os governos em crise por causa da austeridade, a Itália
deve ser dos primeiros a sair dela. Seria um excelente exemplo para a Zona Euro
e para o futuro da União Europeia e do euro, que, note-se, continua a ser uma
moeda forte.
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