quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Leituras

 

 

 

Carta aberta a uns pedaços de merda

 


Olá, amiguinhos do FMI. Eu sou o ratinho branco. Desculpem estar a incomodar-vos agora que vocês estão com stress pós-traumático por terem lixado isto tudo. Concluíram vocês, depois do leite derramado: "A austeridade pode ser autodestrutiva." E: "O que fizemos foi contraproducente." Quem sou eu para desmentir, eu que, no fundo, só fiquei com o canto dos lábios caídos, sem esperança? O que é isso comparado com a vossa dor?! Eu só estiquei o pernil ou apanhei três tipos de cancro, mas é para isso que servimos nos laboratório: somos baratos e dóceis. Já vocês não têm esses estados de alma (ficar sem emprego, que mau gosto...), vocês são deuses com fatos de alpaca e gravata vermelha como esses três novos que acabam de desembarcar para nos analisar os reflexos. "Corre, ratinho branco!", e eu corro. Vocês cortam-me as patas: "Corre, ratinho branco!", e eu não corro. E vocês apontam nos vossos canhenhos sábios: "Os ratos sem pernas ficam surdos." Como vocês são sábios! E humildes. Fizeram-nos uma experiência que falhou e fazem um relatório: olha, falhou. Que lição de profissionalismo, deixam-nos na merda e assumem. Assumir quer dizer "vamos mudar-lhes as doses", não é? E, amanhã, se falhar, outro relatório: olha, falhou. O vosso destino, amiguinhos do FMI, eu compreendo. Vocês são aves de arribação, falham aqui, partem para ali. Entendo menos o dos vossos kapos locais: em falhando e ficando, porque continuam seguros no laboratório?



De recuo em recuo até ao tapado geral

 


Há alguns anos, escrevi uma crónica em que exagerei, deliberadamente exagerei. O que eu queria dizer era: ainda não chegámos a este ponto, mas que vamos para lá, vamos... A crónica era sobre dois talibãs que desembarcaram numa praia algarvia e anunciaram a guerra santa. Exército, força aérea e fuzileiros cercaram os invasores, que ameaçavam com uma espingarda enferrujada e um canivete. Negociações. Horas depois, um oficial anunciou a vitória da democracia: os talibãs recuaram nas exigências! Eles tinham começado por querer que as mulheres portuguesas usassem burca. Mas chegou-se a um compromisso, suspirou de alívio o nosso oficial: "A burca só será usada a sul do Mondego. Conseguimos que, a norte, a medida fosse adiada por cinco anos..." Ontem lembrei-me dessa crónica exagerada. O Daily Express contou um julgamento em Londres. A ré apareceu de niqab - vestes negras da cabeça aos pés, luvas e só uma nesga nos olhos. O juiz começou por dizer que ela tinha de tirar toda aquela ausência de identidade. Ela negou-se. O juiz aceitou que ela fosse a uma salinha para uma funcionária confirmar que era bem ela. Ela voltou e vai poder ficar tapada durante as audiências: só quando prestar declarações é que tem de mostrar a cara ao juiz e ao júri... O advogado dela vai recorrer. Fez mal em precipitar-se, se ele conseguir aguentar o julgamento durante cinco anos, também aquele norte do Mondego já estará conquistado.


por Ferreiras Fernandes
Diário de Notícias

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