sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Leituras

 

Ainda Borges

por Fernanda Câncio / Diário de Notícias


Existe no Código Penal o crime de "ofensa à memória de pessoa falecida". Prevê prisão até seis meses para quem, "por qualquer forma, ofender gravemente a memória de pessoa falecida" - ou seja, lançar, no espaço público, piropos impróprios a um morto. Nas diversas colunas de opinião que têm exprimido o choque dos seus autores com reações menos elogiosas à morte de António Borges, não houve, porém, menção ao artigo 185.º do CP. Na falta disso comentaristas como João Miguel Tavares (JMT) e a historiadora Fátima Bonifácio resolveram postular, a partir do contraste entre as reações ao passamento de Borges e Miguel Portas, que a esquerda é má e ordinária e a direita boa e nobre. Bonifácio prova isso por A+B, com uma catilinária sobre os crimes do estalinismo e o facto de o PCP nunca ter pedido desculpa por eles (era isto, não era?). No fim do texto lá admite que a esquerda não se resume ao PCP mas já não tendo espaço resolve a coisa certificando que é tudo igual. JMT, que escreveu primeiro, tinha dado o mote: "Demasiados homens de esquerda olham para demasiados homens de direita como inimigos a abater." Sem dúvida, nem é preciso ir buscar os crimes de Estaline: basta olhar para os últimos anos em Portugal e ver como os homens de direita foram vilipendiados e perseguidos pela canalha de esquerda. De apodos de Hitler e Drácula a ataques à vida privada, passando pelo preço "de saldo" que pagaram pelas habitações, certificações de que os descendentes devem ter vergonha deles, acusações de corrupção e até de escutas à presidência da República, não houve nada de que a esquerdalha do PSD e CDS não lançasse mão para abater os seus inimigos de direita. Felizmente, temos JMT para denunciar esta vergonha de "não ser possível [à esquerda, claro] discordar sem demonizar", o que impede o País de ter "um debate político que saia da sofisticação do jardim de infância".

É pois a infantilidade que nos impede de perceber que a diferença nas reações às mortes de Portas e Borges nada tem nada que ver com a diferença entre o que fizeram em vida. A mesma infantilidade que nos leva a olhar para Borges e ver uma personagem de simbolismo talvez ímpar cujo percurso passa, no auge da crise internacional, da administração da financeira Goldman Sachs para o FMI, onde supervisionou os resgates europeus, e daí para, como ministro à solta do governo, aplicar os termos do resgate português. Há lá coisa mais infantil do que esta fábula da raposa e do galinheiro? Ou que questionarmo-nos como, com uma esquerda tão vilmente persecutória, pôde um homem de direita como Borges safar-se com isto tudo e lograr ainda a proeza de estar dois anos a trabalhar para o Governo mais pequeno e poupado e transparente de sempre sem se saber quanto ganhava? Criançola que sou, é no facto de isto ter sido possível que vejo ofensa e insulto. Mas é a Portugal, que, como não está (ainda) morto, pode ser ofendido à vontade.

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