por Ferreira Fernandes / Diário de Notícias
Nem sei bem se isto me aconteceu. Eu estava num restaurante caro, algures em
Nova Jérsia. O empregado era velho, arrastava as pernas, o sonho americano é
mais duro do que se crê. Numa mesa estava um tipo que eu conhecia. Conhecia-lhe
a mulher, feia e atraente, a irmã, passada, a mãe, inquietante. E talvez
gostasse de ser apresentado a um amigo dele, Paulie, psicótico, que acamava as
cãs com um pente como só fazem os suburbanos. Mas pensando melhor, pelo que
correu (falando-se baixinho), talvez não - a máfia é muito bonita, mas longe. Eu
reconhecia, pois, o tipo da mesa ao lado. Um casal jovem e barulhento entrou no
restaurante, o rapaz trazia um boné de pala ao contrário. O olhar bovino de Tony
- era o nome do tal meu homem - acompanhou o casal até ele se sentar, com o boné
do rapaz enroscado à nuca. A companhia de Tony falava e ele mastigava, com a
queixada imensa. Levantou-se uma voz na mesa do casal intrometido, segui o olhar
de Tony e percebi que ele não gostou do tom e das maneiras do rapazola com o
velho empregado. Vi Tony a ter um diálogo consigo próprio, como as panelas de
pressão. A sua companhia continuava a falar mas ele não estava lá. Foi tudo
vagaroso, Tony levantou-se, pousou o guardanapo e foi até à mesa do casal. Parou
e disse, baixo: "Tira o boné da cabeça." O rapaz ensaiou um desdém, mas reparou
no olhar do outro. Tirou o boné. Exausto, castigar abusos também cansa, Tony
voltou à sua mesa. Ontem morreu.
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