terça-feira, 5 de março de 2013

Crise lamentável / Mário de Sá-Carneiro

 

Gostava tanto de mexer na vida,
De ser quem sou, mas de poder tocar-lhe...
E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe...


Viver em casa como toda a gente -
Não ter juízo nos meus livros, mas
Chegar ao fim do mês sempre com as
Despesas pagas religiosamente...


Não ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas.
À minha torre ebúrnea abrir janelas,
Numa palavra - e não fazer mais cenas!


Ter força um dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem em emperrando vai.
- Não mandar telegramas
ao meu Pai,
Não andar por Paris, como
ando, às moscas...

Levantar-me e sair. Não precisar
De hora e meia de vir p'rà rua.
Pôr termo a isto de viver na lua -
Perder a "frousse" das correntes de ar.


Não estar sempre a bulir, a quebrar cousas
Por casa do amigos que frequento -
Não me embrenhar por histórias melindrosas
Que, em fantasia, apenas, argumento...


Que tudo em mim é fantasia alada,
- Um crime ou bem que nunca se comete -
E sempre o Oiro em chumbo se derrete
Por meu Azar ou minha Zoina suada...

Sem comentários:

Enviar um comentário