domingo, 23 de dezembro de 2012

Todos os pássaros sossegaram... \ al berto

Todos os pássaros sossegaram.

As crianças desceram das árvores, guardaram os jogos,

recolheram a casa. Levanto a cabeça e deixo a voz deambular

por dentro deste silêncio de água e de estrelas.



A noite está próxima.


Deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.

Acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.



Longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon,

com suas traições… ouço hélices de barcos,

motores… quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.



A verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade,

com um sussurro cortante nos lábios.

E atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes

que ligam uma treva a outra treva.



Caminho como sempre caminhei, dentro de mim

─ rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.



O absinto… esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros.

E vi a vida como um barco à deriva. Vi esse barco tentar regressar

ao porto - mas os portos são olhos enormes

que vigiam os oceanos, servem para levarmos o corpo até um deles e morrer.



A noite está próxima.


Vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo.


Sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas.

abro fendas na memória, e a noite surge com suas

cidades queimadas, desertas… e o vento… o vento cintila

onde cresce o lobo que me ronda o sono.



Estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.

De nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras,

de nada me serviria saber a geometria exacta dos

cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoá-lo.



Fico assim, inerte, à beira da noite… olhando o brilho da lua jorrando águas.

O regresso nunca foi possível. - O verdadeiro fugitivo não regressa,

não sabe regressar, reduz os continentes a distâncias mentais.

Aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as constelações vão esboçando

o tormentoso destino dos homens.



Pressinto uma sombra, a envolver-me. Ouço músicas…

espirais de som subindo aos subúrbios da alma.

E acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado,

e renego a alegria.



Não semearei o meu desgosto, por onde passar.

Nem as minhas traições.





2 comentários:

  1. Que poema fantástico!

    Boa noite e bom tempo de festas - votos de uma leitora assídua.

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  2. "..E vi a vida como um barco à deriva. Vi esse barco tentar regressar

    ao porto - mas os portos são olhos enormes

    que vigiam os oceanos, servem para levarmos o corpo até um deles e morrer.


    A ..... está próxima...... "



    Tenha um NOVO ANO Ótimo amigo António !

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