domingo, 11 de março de 2012

Quando o telefone não toca

Valupi | Blog Aspirina B




Pedro Silva Pereira foi convidado para ir à SIC comentar o último número circense da figura que com maior aparato e simbolismo representa a decadência da direita em Portugal. O jornalista não estava interessado nas explicações que o caso suscitasse ao seu interlocutor mas em sacar uma assunção de culpa: Sócrates tinha mesmo sido desleal com Cavaco porque este não foi avisado do PEC IV. Logo no ano passado, depois de uns dias a ser sovado à direita e à esquerda face à ofensiva do Presidente de se dizer ferido na honra, o Governo agarrou-se ao aspecto supostamente informal da reunião em Bruxelas, onde apenas estaria em causa a apresentação das linhas gerais do novo programa de ajustamento ainda a precisar de ser finalizado e aprovado no Parlamento. Claro que o paleio não convenceu ninguém, até porque não tinha essa finalidade. Pura e simplesmente não era possível então, nem agora, contar a verdade: o Governo estava a lidar com um filha-da-puta que os queria comer vivos, o ambiente era de guerra aberta por Cavaco sem direito a prisioneiros. Qualquer tentativa de envolvimento do Presidente da República numa decisão governamental estratégica, depois do comício da tomada de posse que tinha correspondido a uma oficiosa e inusitada moção de censura, seria um exercício de supina hipocrisia e absoluta inutilidade. Cavaco usaria qualquer outro pretexto para levar ao derrube de Sócrates pela simples razão de ser aquele o preciso calendário para o fazer – depois da reeleição e antes que se vissem mais resultados positivos da austeridade nas contas públicas sem FMI a aterrar na Portela. Todavia, estas ilações não pedem mais do que dois neurónios para serem obtidas espontaneamente por quem passe os olhos pelos factos. Silva Pereira esforçou-se por relatar os acontecimentos sem recurso ao vernáculo, detalhando o contexto da situação. Até que o exasperado jornalista da Fox de Carnaxide aproveitou para dar um responso ao xuxa e saiu-se com esta maravilha:

" Isso não teria sido tudo evitado com um telefonema, por exemplo?

Minuto 6:10 "

É sabido que as pessoas fazem qualquer coisa por dinheiro, e nem é preciso muito na enorme maioria dos casos. Podemos admitir, portanto, que o autor da pergunta recebeu uma encomenda e a despachou, ou que veste com tanto amor a camisola da SIC que se imagina um cruzado a combater os infiéis socialistas com as suas perguntas assassinas. Nestas hipóteses, ainda se manteria algum tipo de consciência a respeito do sentido psicadélico do que tinha acabado de ser dito. É que a pergunta estabelece que a falta de um singelo telefonema de S. Bento para Belém está na origem da crise política e subsequente queda do Governo, descalabro dos ratings da República, subida drástica e imparável das taxas de juro, perda da soberania, novo Governo apostado em ir mais longe do que a troika, corte de subsídios, aumento de taxas, diminuição de salários, desmantelamento do Estado social, destruição da herança positiva do anterior Governo, apelos à emigração, aumento descontrolado do desemprego, empobrecimento generalizado e ruína da economia por opção ideológica. Fazer de Sócrates o eterno e exclusivo responsável por qualquer mal que desça sobre esta terra teria aqui apenas mais um capítulo.

Há uma outra possibilidade, e é nessa que aposto. É a de o jornalista acreditar piamente que a tragédia com que se enche quotidianamente os ecrãs televisivos se deve à arrogância dos que foram antipáticos com o senhor Presidente da República, magoando-o tanto com o seu silêncio que Cavaco não teve outro caminho que não fosse este que nos trouxe aqui. Como ninguém se deu ao trabalho de fazer a chamada, como não quiseram gastar 1 minuto a falar com o choné no telelé, o homem amuou e resolveu foder esta merda toda de vez, mas os culpados são os cabrões que não fizeram o caralho do telefonema. Eis o que o pronome demonstrativo na sua abstrusa pergunta transporta com desolada angústia.

Sim, Portugal já esteve bem mais longe de se tornar num imenso Correio da Manhã.

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