quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Quem salva o salvador?

Domingos Farinho, Blog Jugular




Bem ou mal, não é post para discutir isso, o sistema capitalista, no seu estádio evolutivo presente, é um sistema financeiro assente na dívida. A captura das poupanças pelo sistema deixou de ser algo de que o sistema pudesse estar à espera, o tempo tornou-se demasiado rápido para isso: para quê poupar, quando pode ter já?



Daí que, excluídos os muito pobres, que não têm sequer acesso ao crédito e os muito (muito) ricos, que não precisam dele, toda as sociedades modernas assentam os seus perfis de vida na existência de dívida. Dívida que se traduz em aquisição de liquidez e em aquisição de bens ou realização de investimentos.



O que sucede, contudo, quando, como nos romances de pactos com o diabo, não conseguimos servir a dívida? Em princípio, coisas terríveis. Daí que seja particularmente importante, para o sistema capitalista financeiro que a avaliação de risco seja o mais rigorosa e inventiva possível e que, muito importante, estejam previstos mecanismos para acudir a situações imprevistas.



Um desses mecanismos, o mais informal de todos eles, foi a invenção do Estado Social. Sobretudo, a invenção do Estado Social explicado pelo que havia acontecido antes: liberalismo e depressão. O Estado Social passou a funcionar, senão normativamente, informal e sistemicamente, como garante do sistema financeiro. O Estado Social tornou-se, literalmente, o salvador da pátria. Se o cidadão ou a empresa x falhavam o serviço da dívida, o sistema funcionava, o banco reclamava os seus créditos e o Estado Social, no limite, entrava com os seus programas e prestações sociais para impedir a indigência e até, pasme-se, promover a recuperação de cidadãos e empresas.



Durante décadas, ninguém se queixou disto. Empresas e cidadãos receberam de braços abertos o Estado Social. Todos beneficiavam com ele: mesmo os que não recebiam nada do Estado, vendiam alguma coisa ao Estado. A dívida estava lá, ia sendo gerida e, correndo mal, o Estado salvava.



Até que a crise chegou aos demasiado grandes para falharem. Sobretudo aos demasiado grandes para que a falência pudesse ser resolvida pelo Estado Social. Era já outro Estado que era preciso, um Estado salvador. Um Estado que não ficasse à espera de falências e afins, acudindo depois com os seus meios clássicos. Um Estado que impedisse à própria falência do sistema financeiro. Isto é, que mantivesse a dívida viva.



Com a dívida transferida para o Estado era só uma questão de tempo, independentemente de uma melhor ou pior gestão das contas públicas (que evidentemente atrasa ou acelera o processo), até que o Estado salvador tivesse que ser salvo. Isto porque os imprevistos acontecessem e, por definição, é impossível prever o imprevisível: um sistema baseado na dívida pode bem um dia ficar à mercê das condições que ele próprio criou. A alternativa era não haver nenhuma das conquistas conseguidas pelo Estado Social nos últimos 60 anos. É uma opção. A de Gaspar, por exemplo, pelo caminho que toma.



Daí que, no dia em que os credores, venham para o Estado, mesmo com a suprema ironia, de ter sido o Estado, a garantir a sua existência, a pergunta que faça sentido é: quem salva o salvador?



Há a resposta hipócrita, pois ninguém tem as mãos limpas, todos vivemos e beneficiamos do Estado Social construído sobre a dívida: o importante é pagar, custe a austeridade o que custar. Isto, mesmo sendo a negação do capitalismo financeiro, mesmo sendo de um proselitismo moral medieval, é a resposta hipócrita de muitos.



E há resposta sensata: se construímos um sistema que se revelou problemático, ao fim de tantos anos a resolver problemas e a melhorar a vida das pessoas, há que encontrar uma solução conjunta para um problema que é sistémico.



Está na hora dos salvados decidirem se querem salvar o salvador ou se preferem afundar-se com o próprio sistema que criaram.



Ainda assim, quando alguém, como o ex-Primeiro Ministro, José Sócrates, resume tudo isto, dizendo que a dívida é para ser gerida - o famoso serviço da dívida que as nossas Faculdades de topo internacional ensinam ao seus alunos e que qualquer banco pretende impingir aos seus clientes - levanta-se um clamor hipócrita e sonso, sublinho, hipócrita e sonso, como se nunca tivéssemos tido dívida pública, como se a dívida pública não tivesse sido o sustento do nosso Estado nos últimos 30 anos, e como se a gestão da dívida fosse impermeável ao desconhecido, às crises, aos especuladores e facilmente controlável por Governos bondosos.



Pode haver um limite para a austeridade que os portugueses têm que suportar mas parece que, tal como a hipocrisia que vamos tendo que suportar, tais limites ainda não foram atingidos.

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