Preconceito no ataque a Lula

Paulo Moreira Leite, Época




Não se deve desprezar os teóricos da “natureza humana.” Sua especialidade é apagar a responsabilidade dos líderes e dirigentes de cada pais e cada época.
Assim, teria sido a “natureza humana” que levou a uma reação de sadismo diante da doença de Lula.
Não é pela esperança de melhorar a saúde pública que muitas pessoas dizem de Lula deveria ir para o SUS. É uma sentença mórbida.
A agressividade faz parte das lutas políticas desde os tempos em que os brasileiros usavam tanga e guerreavam com arco e flecha, certo?
Não conheço nenhum eleitor que nunca tenha xingado pelo menos um político na vida. É natural que utilizem a internet para dizer o que pensam.
Mas muita gente está convencida de que, desta vez, se atravessou um limite. O cancer de Lula é real. A agressão deixa de ser figurativa.
Vem daí o escândalo e a conversa sobre natureza humana.
Essa é uma conversa antiga. Sua função é servir como desculpa para grandes atrocidades. Ajuda a lamentar os problemas e refugiar-se em reações sentimentais. Diante de uma monstruosidade, você exclama: o homem é assim.
Pode ser feio e lamentável. Mas, já que é assim, estamos perdoados.
O problema é que, com essa cultura melodramátia, justifica-se até Hitler. Ela permite esconder aqueles aristocratas de ar respeitável e imensa conta no banco que abriram o caminho para o nazismo porque não queriam a social-democracia e tinham horror ao comunismo. Sem eles é possível que Hitler não tivesse passado de um maluco de cervejaria.

Hanna Arendt falou em banalidade do mal para referir-se ao extermínio de judeus em campos de concentração.
Stalin, outro tirano do século XX, era descrito pelos defensores como o “mal necessário.” Necessário a que? À “natureza humana.”
Não custa lembrar aquela verdade número 1 da filosofia: a natureza humana única, permanente, não existe. Ela é um produto da história, construída e reconstruída.

Na dúvida, faça uma visita a uma nação no Xingu. Ou pergunte como vai para um sujeito que lhe pede uma moeda no farol. Interrogue-se porque você dá o que ele pede. Ou porque diz que não. Qual é a natureza humana?
O sadismo diante de Lula tem uma motivação política. Foi cuidadosamente construído e estimulado pelo alto, durante seu mandato e também depois.
Quando a crítica política — indispensável, necessária — mostrou-se pouco eficaz para derrotá-lo, partiu-se para o ataque pessoal e o linchamento moral. Não tem a ver com a natureza humana.
Tem a ver com o ambiente radicalizado da luta política. Para determinadas pessoas, a vitória de Lula é a pior coisa que lhes aconteceu na vida. Sentem-se pessoalmente derrotadas, humilhadas, envergonhadas.
É um sentimento além além da razão. Por que? Porque sua convicção política é estimulada pelo preconceito, que é um sentimento muito mais profundo, irracional, enraizado. Pode ser usado e manipulado, como já se viu tantas vezes na História. Por isso Goebells dizia que uma mentira repetida mil vezes se tranforma em verdade.
O preconceito impede essas pessoas de compreender que, apesar de seus imensos defeitos, para a maioria dos brasileiros Lula trouxe uma noção de dignidade e uma promessa de igualdade que o país nunca possuiu. O sentimento é uma repulsa generalizante. Envolve Lula e também seus seguidores, como se viu nos ataques aos nordestinos que ocorreram no fim da campanha presidencial.

O odio só se torna publicável quando é estimulado e acobertado com palavras nobres. O Brasil tem uma cultura solidária. Basta aparecer uma tragédia para ver o desempenho do brasileiro no envio de alimentos, roupas, remédios…
O problema não é este. É o interesse político, que atravessou a fronteira da civilização, aquela que distingue o humano do animal.

O resultado está aí.