quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Aos deuses sem fiéis - José Saramago



Talvez a hora escura, a chuva lenta,
Ou esta solidão inconformada.

Talvez porque a vontade se recolha
Neste findar de tarde sem remédio.

Finjo no chão as marcas dos joelhos
E desenho o meu vulto em penitente.

Aos deuses sem fiéis invoco e rezo,
E pergunto a que venho e o que sou.

Ouvem-me calados os deuses e prudentes,
Sem um gesto de paz ou de recusa.

Entre as mãos vagarosas vão passando
A joeira do tempo irrecusável.

Um sorriso, por fim, passa furtivo
Nos seus rostos de fumo e de poeira.

Entre os lábios ressecos brilham dentes
De rilhar carne humana desgastados.

Nada mais que o sorriso retribui
O corpo ajoelhado em que não estou.

Anoitece de todo, os deuses mordem,
Com seus dentes de névoa e de bolor,
A resposta que aos lábios não chegou

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