quarta-feira, 11 de novembro de 2009

« Casas filosofais », os símbolos perdidos de Portugal





por Tiago Salazar, fotografia Rui Coutinho
Diário de Notícias



Distinguir uma morada corriqueira de um lugar filosofal passa, sobretudo, por procurar o que não se consegue ver. No Portugal misterioso abundam os casos emblemáticos. Os exemplos de significados ocultos vão da Baixa pombalina ao Convento de Mafra, do Palácio de Fronteira ou da Quinta da Regaleira em Sintra aos jardins portuenses de Serralves.


HÁ EDIFÍCIOS – casas, palácios, conventos – em que se entra e sente-se uma atmosfera estranha. Um arrepio, uma recordação, uma imagem. A esse ambiente nunca é estranha a ornamentação de portas e janelas, salas e quartos, tectos, telhados ou chaminés. Carisma, mística, ponte para o sobrenatural, assombração... basta acreditar para se lançar em busca do símbolo perdido. Uma legião de estudiosos analisa à lupa as estátuas, estatuetas, e sinais mais ou menos ocultos que decoram os espaços – e a literatura especializada dava para encher bibliotecas. Peritos em esoterismo vindos de diversas partes do mundo estiveram reunidos na Quinta da Regaleira, em Sintra, no colóquio internacional «Moradas Filosofais», organizado pela Fundação Cultursintra, nos passados dias 24 e 25 de Outubro. Só faltou mesmo Dan Brown...



A DEFINIÇÃO de «morada filosofal» foi dada pelo alquimista francês Fulcanelli num livro intitulado As Mansões Filosofais (Edições 70). Pode ser um objecto, uma obra de arte ou um lugar que contenha em si determinados elementos iconográficos (construções, objectos, símbolos, etc.) que remetam para um sentido de transcendência do ponto de vista hermético, religioso ou político e que têm origem na geometria sagrada e remontam ao antigo Egipto – ou, mais recentemente, às sagas de Harry Potter e de Robert Langdon, o professor de simbologia herói de O Código Da Vinci e de O Símbolo Perdido, de Dan Brown.

Segundo Manuel J. Gandra, filósofo esoterista, uma referência no estudo da história mítica portuguesa e da iconologia da arte, há inúmeros exemplos em Portugal de moradas filosofais, entre palácios, mansões, casas, jardins e até jazigos. No primeiro volume da sua obra Dicionário de Portugal Sobrenatural (o segundo volume está no prelo), encontram-se vários casos, como a Baixa pombalina, que «na sua relação de polaridade com o Convento de Mafra é uma grande morada filosofal», diz para princípio de conversa.

Mas como se distingue um endereço místico de outro, profano, que é como quem diz sem relação com o sobrenatural? Gandra explica sem pestanejar: «O problema de dizer se estamos ou não diante de um endereço filosofal coloca-se na fundamentação. É muito simples dizer que é simbólico, tal como é muito simples dizer que é ornamental. Por regra, o que se verifica é que para alguns é meramente ornamental e para outros, que se dedicam a estudar as causas das coisas, vai muito além disso. O próprio ornamento também deixa de o ser quando é intencionalmente ornamento. Os historiadores de arte esquecem-se desses pormenores. É muitas vezes uma forma de esconder a ignorância se determinado objecto tem um significado que nos escapa. O caminho que podemos percorrer é demasiado vasto para o ignorarmos.»



NO COLÓQUIO «Moradas Filosofais», o esoterista remete todas as explicações para a emblemática, ciência em cujo estudo é um dos pioneiros em Portugal. «Grande parte do que são as moradas filosofais portuguesas explica-se nesse domínio e não no do âmbito hermético, embora também haja casos de moradas filosofais de âmbito hermético em Portugal como o Panteão dos Cabrais, no Castelo de Belmonte. Têm é menos interesse do que os exemplos franceses que aqui foram falados [L’Hôtel Lallemant, em Bourges, ou a cidade de Cordes-sur-Ciel, um bastião cátaro onde pontificaram o papa alquimista João XXII e surrealistas próximos de André Breton, como o pintor «fantasofista» Maurice Baskine]», diz à NS’.




A Quinta da Regaleira [ver caixa], o caso de estudo do dia, não é o maior exemplo, mas é «um dos maiores». Para Gandra, a morada mais complexa é o Palácio de Mafra, seguida da Baixa pombalina. «D. João V e D. José tiveram a intenção de projectar Mafra no estrangeiro. Trata-se de um projecto imperial alimentado profundamente. Nada foi deixado ao acaso. Há outros exemplos de âmbito particular, como a Regaleira, metáfora em pedra e vegetação, ou os jardins da Quinta Real, em Caxias, do Palácio de Oeiras ou de Serralves. Os jardins do Museu de Serralves têm muito que se diga. Estamos a falar de um projecto de um paisagista francês conhecedor das leis de Hermes», sublinha.

E serão os arquitectos portugueses mais sensíveis à «arquitectura sagrada»? «Há alguns “crentes”, mas na maior parte dos casos não se sabe quem foi o autor do projecto. O problema é complexo. E quando começamos a visualizá-lo a partir da emblemática, a complexidade ainda é maior. A literatura emblemática é praticamente infinita. Face a isso, o nosso trabalho é vasculhar os textos de autores que poderão ter alguma influência em Portugal e só a partir daí podemos passar à fase seguinte das comparações. Para se ter uma ideia, haverá mais de quatro mil tratados de emblemática intencionalmente construídos como tal. Do levantamento que fiz, só na Biblioteca de Mafra são quase duzentos.»



OUTRO EXEMPLO «notável» é o jazigo, no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, de António Augusto Carvalho Monteiro, o «Monteiro dos Milhões», dono da Quinta da Regaleira e, segundo Gandra, «um homem da estatura filosofal de D. João V». O jazigo atende a todos os princípios da construção esotérica. O desenho é do arquitecto italiano Luigi Manini, o mesmo autor da Regaleira, e desde o formato do talhão (planta hexagonal) aos elementos de estatuária, tudo denota uma «tradução plástica de um ideário». Tanto pode ser o anjo da morte sobrepujado por um baldaquino, que simboliza a extracção do corpo e alma do moribundo, como a borboleta cinzelada que remete para a libertação do casulo do tempo. A porta estreita e alta que conduz ao Céu, o «quarto de dormir» com aldraba, a chave – a mesma que abria as portas da Regaleira –, a cripta das traseiras onde figuram as duas tíbias cruzadas encimadas por uma caveira, as duas corujas protectoras ou as papoilas dormideiras, ícone botânico da ressurreição.

Nas digressões herméticas ou emblemáticas, sublinha o especialista, o que conta são os «pormenores unificadores». Nos jardins e paredes do Palácio de Fronteira, em Lisboa, desvendam-se outros tantos trechos de feições simbolistas universais, em concílio com belos e variados efeitos de genuína arquitectura portuguesa. «Gravuras, azulejaria e estatuária, tudo com um sentido preciso», afiança Gandra. Trata-se de uma família de tradições livres, que se distinguiu na Restauração de 1640. Os painéis das batalhas ou os murais com horóscopos são exemplos emblemáticos, embora Gandra prefira um menos óbvio, a escultura denominada Ocasião, uma figura feminina equilibrada sobre uma esfera, com asas nos tornozelos, de navalha na mão, nuca calva e cabelo lançado para a frente. «Um paradigma da emblemática que se repete noutros mansões», explica.



OUTRA das características das moradas filosofais é que continuam vivas mesmo depois de desabitadas, «como esfinges a questionarem os passantes». «A escolha do lugar não era aleatória mas também não era evidente. Se assim fosse, a Regaleira não teria passado por todas as fases que tem passado. Começando por uma interpretação destituída de sentido que é ser um sítio maçónico. Há um símbolo maçónico em toda a quinta, ao contrário do que se diz. Só isso levaria a pensar. Se fosse uma coisa evidente toda a gente veria», diz Gandra.

Nesta lógica, acrescenta o investigador, «a Regaleira tem um sentido, conta uma história, mas não é de leitura óbvia. Conhecemos as fontes, as origens, o pensamento do dono ou as intenções do projectista». Sobre o pensamento de Carvalho Monteiro bastaria saber que foi o mais importante coleccionador de obras de Camões que alguma vez houve em Portugal.

Apadrinhou, entre outras, uma edição em italiano d’Os Lusíadas, traduzida por Manini, e outra, em português, da Divina Comédia, de Dante. «Estas duas obras são a chave da Regaleira», afirma, peremptório, o filósofo. «Comparando a Regaleira com Mafra dir-se-á que a primeira é mais exuberante. As exuberâncias de Mafra não estão visíveis, a configuração geométrica, os números, a matemática. Na Regaleira exaltam-se as sensações, a começar pelo exotismo da vegetação. De resto, o emblematismo não está disposto da mesma maneira em todas as casas. Depende da época, dos objectivos. Quando se fala de uma morada filosofal não podemos estar à espera de encontrar paralelismos», diz Gandra.

A associação da Regaleira à expressão «mansão filosofal» pode ser feita por muitas vias, das «curvas» arquitectónicas à relação aparentemente inusitada entre o Atanhor, a assustadora boca aberta figurada nas traseiras da capela, e o célebre Baphomet, atribuído aos Templários. Trata-se de um exemplo de dupla identificação, outra das características dos mistérios das mansões filosofais.



NA ARQUITECTURA contemporânea também há exemplos fortíssimos de lugares que permitem a duplicidade de identificações, como a Brasília de Niemeyer, Auroville, na Índia, ou a Catedral da Sagrada Família, de Gaudí, em Barcelona. Para Gandra, «em Portugal, o caso mais cabal é a Quinta de Serralves, no Porto, apesar de em algumas obras de Siza Vieira se notar que há preocupações filosofais embora ele diga que não é bem assim. Quem for ver com olhos de ver a Igreja de Marco de Canavezes verá que tem essas preocupações, que fez o trabalho de casa. Está tudo no sítio, ao ponto de D. Manuel Martins, bispo emérito de Setúbal, ter dito numa conversa que achava que aquilo era uma trapalhada e depois assumiu-se abismado com os rigores».

O número, a geometria e as referências mitológicas são os pilares das moradas filosofais, mais do que travejamentos, fundos de estuque ou obras da talha. «Estudar emblemática é como aprender uma língua extravagante», diz Manuel Gandra. A geometria repete-se invariavelmente, caso da planta hexagonal.

Há réplicas no sentido de imitar as coisas que contam, sobretudo desde a Antiguidade. O escritor e realizador António de Macedo, membro destacado da Ordem Hermética Rosa Cruz, outro dos oradores em Sintra, indica como um dos grandes exemplos bíblicos o Tabernáculo no Deserto, que serviu de modelo ao Templo de Salomão, ao Novo Templo da visão de Ezequiel e a todas as estruturas de «arte gótica» desde os templos térreos dos Templários até aos templos náuticos da Ordem dos Cavaleiros de Cristo, desde as caravelas dos Descobrimentos aos monumentos manuelinos.

Outro exemplo ainda é o rectângulo raiz de 2, um dos primeiros passos do chamado Ad Quadratum (fórmula geométrica muito usada na arquitectura) que vem desde a Antiguidade Clássica. «Quem mais e melhor escreveu sobre o assunto foi o professor Lima de Freitas. Debruçou-se sobretudo sobre a obra de Almada Negreiros (em particular a obra Ver). Se verificar o painel do átrio da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, verá que é uma brincadeira do Almada para os vindouros, uma ironia. Como se dissesse, “agora deslindem”. Tenho a desconfiança de que aquilo esconde uma obra naturalista com paisagens, gentes, etc. É preciso decifrar», adianta Manuel Gandra.

O último grande mestre construtor terá sido o catalão Antonio Gaudí, facto que responde à estranheza de alguns arquitectos diante de uma mansão filosofal tão revolucionária nas formas mas tão tradicional nos materiais de construção como é a Catedral da Sagrada Família, em Barcelona. Obra em que assenta o conhecimento da tradição, a dos construtores do Templo, isto é, as ordens maçónicas congregadoras de pedreiros-livres, os também chamados maçons, muitos deles artesãos destas intrigantes moradas. Onde se continua à procura do símbolo perdido.









Os meandros da Regaleira

A Quinta da Regaleira constitui um dos mais surpreendentes monumentos da serra de Sintra. Situada no termo do centro histórico da vila, foi construída entre 1904 e 1910, no período derradeiro da monarquia. Os domínios românticos outrora pertencentes à viscondessa da Regaleira foram adquiridos e ampliados por António Augusto Carvalho Monteiro (1848-1920) para fundar o seu lugar de eleição. Detentor de uma fortuna prodigiosa, que lhe valeu a alcunha de «Monteiro dos Milhões», associou ao seu projecto singular o génio criativo do arquitecto e cenógrafo italiano Luigi Manini, bem como a mestria dos escultores, canteiros e entalhadores que com este tinham trabalhado no Palace Hotel do Buçaco.

Na obra A Quinta da Regaleira de Sintra, Vítor Manuel Adrião analisa o simbolismo arquitectónico, pictórico e paisagístico, revelando um espaço consagrado de «mansão filosofal», de vocação «nacional, sebástica e de demanda consignada em Cavalaria Espiritual». O estudo vai desde a finalidade da Quinta da Regaleira, o seu misterioso proprietário original, António Augusto Carvalho Monteiro, considerado o «Fulcanelli português», aos mistérios do Palácio do Buçaco ou ao sentido oculto do Jardim Zoológico de Lisboa.



Casas assombradas

Para Manuel J. Gandra o fenómeno das casas assombradas é «outra loiça». O facto de uma casa estar assombrada não a torna uma morada filosofal. «Imagine que a Regaleira estava assombrada. Passava a ser uma morada filosofal assombrada. Só assim se pode aceitar essa presença ou assombramento. Há presenças que não detectamos e que quem tenha os sinalizadores alerta consegue detectar (isto é, os médiuns ou pessoas com elevada percepção extra-sensorial, capazes de captar informação e de agir sobre fenómenos físicos e biológicos sem qualquer mediação física). Há pessoas mais sintonizáveis com esses fenómenos. Mas nada disso influi na determinação de uma morada filosofal.»

Uma casa assombrada será então aquela onde decorrem fenómenos sobrenaturais, como objectos que se deslocam sozinhos, presenças (almas, fantasmas?), ruídos inexplicáveis. Entre as moradas mais conhecidas na região de Lisboa, mais precisamente na linha de Cascais, estão a Casa das Pedras, desenhada pelo arquitecto italiano Nicola Bigaglia, o Castelinho ou as ruínas de uma antiga casa de chá, em Caxias, junto à curva que dá acesso à A5, próximo do Farol da Gibalta, todas estas onde se conta haver «presenças». Outros endereços ligados aos fenómenos paranormais são o Hotel da Belavista, em Portimão, onde, reza a lenda, a proprietária original ainda por lá «caminha», ou o Sanatório da Serra da Estrela, onde há quem assegure que continuam ali a «viver» espíritos de antigos doentes. Gandra garante que nenhuma destas casas ou lugares tem relação com as moradas filosofais.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

    ResponderEliminar
  2. Nossa... António!
    Essa reportagem é muito interessante, mas confesso pra ti que tenho um pouco de medo de “casas filosofais”, “duplicidades de identificações”, “textos subliminares”, “casas assombradas” ...essas coisas todas...
    Há algum tempo atrás li um livro entitulado “As Mansões Filosofais” de Fulcanelli que abordava esse tema, levando mais para o lado da ciência alquímica.
    Bjss

    ResponderEliminar