sexta-feira, 9 de março de 2012

Vargas Llosa, ou a liberdade da taradice

Henrique Raposo | Expresso




Os Cadernos de Dom Rigoberto não é um Vargas Llosa vintage, mas é um Vargas Llosa, ou seja, é bom aos montes. O eixo central do romance gira em torno de um triângulo semi-incestuoso: Rigoberto, Fonchito, o filho, e Dona Lucrécia, a segunda mulher de Rigoberto, madrasta de Fonchito e senhora de apetites inconfessáveis, talvez um pouco belgas. Não vou contar muito sobre a história, até porque a história é aqui um acessório, algo que serve para Llosa pendurar aquilo que interessa: os devaneios sexuais de Rigoberto, os tais cadernos, reproduzidos numa linguagem barroca, excessiva, carregada - a prova de que Vargas Llosa escreve bem de qualquer maneira: "pareciam-se no seu desprezo pela moda moderna da magreza e do estilo lanceolado, na rua renascentista sumptuosidade, na sua abundância de mamas, coxas, nádegas e braços, naquelas magníficas rotundidades que (...) eram firmes, duras, tensas, prensadas como se as modelassem invisíveis espartilhos, cintas, ligas e soutiens". Mas esta artilharia carnal e formal seria uma sobremesa inconsequente (divertida, mas inconsequente) se não estivesse enquadrada no esqueleto, vá, moral (não moralista) da obra de Llosa.

O comité justificou a atribuição do Nobel a Vargas Llosa com o seguinte argumento: Llosa cria narrativas que representam a resistência do indivíduo ante as forças totalitárias da sociedade moderninha. Por uma vez na vida, o comité tem razão. O ethos central da obra de Vargas Llosa é mesmo a insuperável individualidade do ser humano. Há apenas homens, e não uma Humanidade. E cada homem é uma entidade que resiste à Nação, Classe, Tradição, Modernidade, Progresso, Religião, Liberdade, Igualdade, enfim, Llosa mostra o indivíduo a resistir a todos os conceitos que nos querem esmagar com a majestade da maiúscula. Sim, um indivíduo pode acreditar na Nação ou na Classe, mas esses conceitos são apenas o palco histórico da acção do indivíduo. Não o substituem. Ora, apesar de lidar com os assuntos da alcova, Os Cadernos de Dom Rigoberto não escapa a esta matriz. Quem vir aqui apenas um exercício onanista tem de ir ao oculista. De forma explícita (nos cadernos) e implícita (na história do triângulo incestuoso), Vargas Llosa diz-nos que as nossas taras são aquilo que nos torna únicos, são a nossa impressão digital derradeira, são um espelho do livre arbítrio. Tal como como dizia meu avô, há muita liberdade no vício e até no pecado.

Ao longo do livro, Dom Rigoberto defende esta individualidade pervertida contra a pressão de duas forças antagónicas: a brigada dos bons costumes e a indústria pornográfica. Às tantas, podemos ler: "eu era muito católico" e "cultor de utopias sociais, convencido de que, mediante um enérgico apostolado inspirado na palavra evangélica, se podia arrebatar ao espírito do mal - chamávamos-lhe pecado - o domínio da história humana e construir uma sociedade homogénea", a "República Cristã, essa utopia espiritual colectivista". Problema? A corrente igualitária esbarrou nesse "vórtice de especificidades incompatíveis que é o conglomerado humano". E foi assim que Rigoberto deixou de ser cobarde em relação às "fobias e manias" que faziam dele um homem. Não há indivíduo sem taradices. Pela mesma ordem de razões, o nosso herói desnaturado também ataca o rolo compressor que é a pornografia: "aparentando satisfazer as urgência sexuais", a pornografia subjuga e estandardiza as taras, "constrangendo-as dentro de caricaturas que vulgarizam o sexo". Na era da pornografia, os milhões de taras individuais são reduzidas apenas a uma tara maquinal, ao jeito de linha de montagem. Contra isto, Rigoberto invoca, entre outras coisas, as "cuecas da professora" e a "rebelião do clítoris". É ler, minha gente, é ler.

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