terça-feira, 26 de março de 2013

Os verdadeiros socráticos

Sócrates, o anticristo do laranjal


Quando falamos da reacção da direita portuguesa a Sócrates temos de começar por manter aprioristicamente presentes estes três factos:

- A direita portuguesa deixa-se representar ideológica e moralmente pelo Correio da Manhã.

- A direita portuguesa não se perturba quando um Presidente da República é cúmplice, se é que não foi mentor, de uma conspiração para perverter dois actos eleitorais. E não se perturba porque esse Presidente da República foi eleito pela direita portuguesa, o que permite concluir que a direita portuguesa apenas lamenta que esse Presidente da República não tenha alcançado pleno sucesso.

- A direita portuguesa educou, instruiu e preparou o casal Passos-Relvas para fazer exactamente aquilo que esse casal fez e faz.

A partir destas evidências é mais fácil de entender a grave perturbação que Sócrates provoca na já gravemente perturbada direita portuguesa. Nunca antes tinham encontrado um adversário que lhes tivesse tão pouco respeito, precisamente por conhecer de ginjeira a direita portuguesa. E foi necessário que o mundo se afundasse na maior crise económica dos últimos 80 anos, a que se seguiu de imediato a maior crise da Zona Euro, para que a direita portuguesa tivesse finalmente um programa político de interesse para o povoléu: diabolizar Sócrates.

Convenhamos que não se trata de uma originalidade, pois é algo que se faz desde que há humanos a disputar através do uso da palavra o poder num grupo, algures no neolítico. Mas resulta. Caluniar o adversário, macular o seu nome, assassinar-lhe o carácter é um ímpeto cujas raízes são biológicas, nasce do instinto de sobrevivência e é um exacto substituto da agressão física. O que se pretende é a morte simbólica do adversário através da sua ostracização. Foi neste quadro antropológico que Sócrates se tornou o alvo de campanhas de ódio que não têm paralelo na democracia em Portugal.
Que diria a direita portuguesa se Sócrates fosse um dos seus? Diria que as perseguições de que é vítima ficam na História como a prova provada da sua importância, da sua coragem, da sua excepcional capacidade de liderança que estaria a incomodar os maiores interesses instalados. Aliás, a direita portuguesa o que mais adoraria era poder contratar Sócrates, como se viu aquando das últimas eleições para o PSD. Vários militantes soltaram esse desejo, dizendo que o partido devia abandonar de vez o serôdio cavaquismo de Ferreira Leite, e sua réplica nos baronetes Paulo Rangel e Aguiar-Branco, e entregar-se à juventude desempoeirada de Passos Coelho, o Sócrates do laranjal. Azarinho, ó pás, essa laranja estava demasiado podre.

Mas Sócrates não pertence à direita portuguesa. Circunstância que nos permite observar – mutatis mutandis – um fenómeno de alienação colectiva congénere das grandes perseguições históricas da Inquisição, das Bruxas de Salém, do Ku Klux Klan, do Macartismo. Trata-se de um processo de deturpação cognitiva a uma escala colectiva. No caso de Sócrates, o plano passou por retirar do debate político o contexto internacional que influenciava a situação nacional de modo a hipertrofiar até ao absurdo a responsabilidade do Governo socialista na evolução das contas públicas. Em simultâneo, lançaram-se campanhas negras e planos de espionagem ao mais alto nível, envolvendo magistrados e polícias, de modo a capturar material para continuar a alimentar as campanhas negras e, com sorte, reunir documentos capazes de levar Sócrates a tribunal fosse lá pelo que fosse e desse no que desse. Daqui resulta que existe um número indeterminado de indivíduos, que se calhar até atinge a fasquia dos milhões, a terem como certo que Sócrates roubou uma quantidade estapafúrdia de dinheiro, que esse dinheiro foi colocado em offshores, que é desse saque que ele vive luxuosamente em Paris e que as autoridades nada fazem para o apanhar apesar de toda a gente saber o que aconteceu porque… ele é o Sócrates – quer dizer, porque ele tem poderes sobrenaturais, ele não é humano, ele é um monstro.

A direita portuguesa, a direita do Correio da Manhã, mas também a direita do Pacheco Pereira que andou a jurar que Sócrates tinha um gabinete onde se utilizavam técnicas dos serviços secretos para assim controlar não se sabe bem o quê ou quem que ele essa parte já não explicou por manifesta falta de tempo, e a direita da Manela que chegou a verbalizar o seu pavor caso Sócrates derrotado em Junho de 2011 continuasse como deputado, e a direita do Cavaco que não descansou até o derrubar e depois ainda o continuou a maldizer, e a direita dos direitolas dirigentes e arraia-miúda que escrevem, gritam e cantam mil vezes ao dia o estribilho “Sócrates levou-nos à bancarrota”, toda esta gente seríssima e competentíssima vive fascinada, obcecada e desvairada com Sócrates. Sãos eles os verdadeiros socráticos, coitaditos.
 
 
 
Valupi. / Blog Aspirina B

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