sábado, 18 de setembro de 2010

O único monge português de Cister

::: por Rosa Ramos, Jornal i


Deixou de ser padre e mudou-se para um mosteiro. O frei José Luís Farinha é o único monge português da Ordem de Cister




Conta que quando sai do Mosteiro do Sobrado, na Galiza, para tratar de algum assunto à cidade mais próxima - La Coruña - se entretém a observar o rosto das pessoas com quem se cruza na rua. Um exercício que resulta num desfile de dezenas de rostos sem nome - há os "alegres", os "cansados", os "preocupados", os "tristes". Sair do habitat e do ritmo vital do mosteiro cisterciense é sempre um choque. "Acho as pessoas muito nervosas", confessa o único monge português da Ordem de Cister, o frei José Luís Farinha.

Desta vez, saiu do mosteiro para falar no III Seminário Internacional sobre Cister, em Tarouca. Minutos antes de começar não mostra uma ponta de nervosismo, mesmo estando habituado ao silêncio e ao recolhimento. Confessa só que anda a dormir pouco.

O início Primeiro, a biografia. O frei José Luís Farinha nasceu há 35 anos na Póvoa da Atalaia, Fundão, a mesma aldeia do poeta Eugénio de Andrade. Sempre quis ser padre. O irmão, quatro anos mais novo, fugia das idas à missa. José Luís não perdia uma. Fingia missas, simulava homilias, inventava paramentos. Depois de ser ordenado, trabalhou em várias paróquias na Guarda e no Fundão. Sentia-se "realizado", "acarinhado" e jura que não era infeliz. Mas sentia "uma certa inquietação". Um dia, um padre levou-o ao Mosteiro do Sobrado. Deixou-se impressionar pela última oração do dia - as completas. "As luzes apagadas, os salmos cantados de memória, uma sensação misteriosa, o silêncio perturbado apenas pelos cânticos dos monges", recorda. Três anos depois, em 2003, juntava-se à comunidade. O que mais custou, garante, nem foi começar a levantar-se às 4h45 todos os dias para rezar antes de o Sol nascer. O pior foi mesmo enfrentar o silêncio e conviver a meias com a solidão. "As pessoas têm medo de se escutar, de se encontrar consigo mesmas e quando estão sozinhas ou em silêncio sentem-se incomodadas, precisam de ligar o rádio, a televisão. Quando aprendemos a aceitar-nos, o silêncio custa menos", diz. Igualmente difícil tem sido aprender a simplificar tudo. "Porque Deus é simples e o ser humano, no seu coração, também, a vida é que nos vai complicando", explica.

O meio Por ser um sítio em que se procura descomplicar todas as coisas, um mosteiro pode parecer um local apetecível para fugir do mundo complicado. "Mas a complicação existe dentro de nós e quando aqui chegamos compreendemos que mesmo levando uma vida simples continuamos a complicar", garante o monge. E como é que se descomplica, afinal? Ri-se. "É um processo de purificação muito longo. Às vezes, demora a vida inteira". E cansativo. Alguns cansam-se pelo caminho.

Em Sobrado, um dos monges casou no ano passado, depois de desistir da vida monástica. Até arranjar emprego, o mosteiro ajudou-o com dinheiro. Mas mesmo os que não desistem têm de enfrentar dificuldades. "Há longos períodos em que o monge se torna ateu", confessa. Acrescenta que ainda não lhe aconteceu. Além disso, os monges também se podem apaixonar. "Um monge vive a sua afectividade em linha com Deus, mas não quer dizer que não se possa apaixonar. Nesse campo, a maior dificuldade é a aceitação da nossa afectividade. Se isso acontecer, porque não somos seres angélicos, é porque o problema está dentro de nós. É preciso parar, compreender. De que é que eu estou à procura naquela pessoa? O que me falta? E depois discernir", explica.

O fim O monge aspira à união com Deus, "descendo ao conhecimento de si próprio". A oração é o ponto de partida, meio e ponto de chegada neste processo. No mosteiro, os dias dividem-se entre o trabalho manual, a oração, o silêncio e a simplicidade. A busca, essa, pode durar a vida inteira. "Só se nos conhecermos no mais íntimo do que somos poderemos sentir o amor de Deus", explica José Luís, que diz que "ainda" não atingiu o fim. "Ainda me chateio por coisas ridículas, por exemplo."

Em Sobrado, onde vive outro português - um noviço que deverá professar os votos em Outubro -, José Luís acumula funções. É apicultor. É cozinheiro. Faz doces. Na vida cisterciense há tarefas realizadas em comum como as refeições, algumas orações e parte do trabalho. Mas na maior parte do tempo os monges estão sozinhos. E manda a Ordem que vivam sempre no mesmo mosteiro até morrer. "Os supermercados mudam quando deixa de haver freguesia, mas os mosteiros partilham as tristezas e as alegrias, ao longo dos séculos, com as populações."

E se descobrir que já não quer ser monge? "Começo outra vida". Responde rápido. E quais são os seus objectivos a longo prazo? "Cozinhar cada vez melhor, que as minhas abelhas produzam cada vez mais mel e que o doce de leite saia cada vez melhor." Estremece-se com a simplicidade das palavras. E não o aborrece que lhe façam sempre as mesmas perguntas? "Não. Só me aborrece que me tomem por anjo."

O céu Apesar de ser uma das ordens mais antigas do mundo, fundada no século XI, Cister "continua a ser um projecto para os nossos dias", garante o frei. A vida monástica, explica, é um estilo de vida contra-corrente e "uma interpelação constante aos valores que guiam a sociedade". Os mosteiros são, então, sinais de "uma alternativa de felicidade em que se aprende a viver com a consciência de nós mesmos", resume. O de Sobrado tem uma hospedaria que recebe visitas de crentes e não crentes. "Pessoas que só querem descansar ou apenas ouvir os monges cantar".

A maior amargura confessa do monge português é perceber que a Igreja é encarada, cada vez mais, como "uma empresa que vende produtos religiosos com uma procura cada vez menor". A espiritualidade "continua lá", garante, mas não seduz. E a Igreja "aparece como a instituição que condena e não como a mãe que acolhe", acrescenta. E é sem melancolia que recorda: "Na vida dos padres fala-se de Deus como se almoçássemos com Ele todos os dias, mas que experiência real há de Deus?", questiona José Luís. Perguntamos nós, no fim de tudo, para que serve afinal um monge. "Para nada, existimos para que nos façam essa pergunta. Se as pessoas se sentirem interpeladas pela nossa presença, a nossa existência já ganhou sentido."

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